Alex Couto Alex Couto

Grande parte de mandar cogumelos é sentir-me um cogumelo

Para minha primeira crónica de 2025, um assunto importante do meu 2024 — antes do meu casamento colapsar, ainda a surfar aquela tranquilidade do avanço inevitável do tempo, fui durante alguns anos alguém estável e de bem com a vida. Fruto dessa tranquilidade, decidi experimentar pela primeira vez cogumelos mágicos. 

Fez agora um ano quando fui passar a passagem de ano a Tabernas com um casal amigo — fãs de westerns, ela certamente mais do que eu. Achei que este ambiente altamente imersivo, com a preservação dos décors onde foram gravados alguns dos mais famosos filmes de cowboyada, podia ser o local certo para uma experiência com substâncias alucinógenas. 

Antes de ir, tive uma conversa com o meu dealer acerca de doses e, fruto da minha altura, recomendou-me que tomasse duas gramas de cogumelos para uma experiência tolerável, mas que decerto pudesse ser sentida. Agradeci — um dealer de confiança foi algo que procurei durante anos, mas só encontrava indivíduos mais atrasados com as horas do que eu próprio sob o efeito de uma porção generosa de fumo (não é por acaso que não fumo no trabalho).

Romaria adiante, crash total em várias frentes. Caí na patetice de avisar a minha mãe de que ia mandar cogumelos e ela fritou muito de nervoso de que nunca fosse voltar. Provavelmente, voltava. Só não voltava o filho dela, mas sim um menino todo queimado que não ia conseguir pagar as contas com recurso ao seu próprio trabalho (e logo em Lisboa, onde as contas são cordilheiras). Para além da minha mãe, também a minha amiga entrou numa espécie de ansiedade acerca da substância (e logo uma tão natural), o que impediu o meu amigo de conseguir alinhar neste plano comigo (tinha outras duas gramas para ele no estojo dos tabacos porque também é alto). 

Ainda assim, sou um rapaz comprometido com a sua própria programação (quase como se estivesse a adivinhar que a minha estabilidade um dia podia ser posta em cheque, muito antes de saber que isso não me ia impedir de voltar a mandar mais cogumelos no futuro). Acordei no dia 1 de janeiro de 2024 e dirigi-me para a cozinha para tratar da marinada que tinha preparado de véspera para uma carne de porco à portuguesa. Na dúvida, ainda antes do pequeno-almoço, mandei as duas gramas dos cogumelos. Bem à frente da minha amiga ansiosa pelo consumo deste fungo, mas sem lhe contar.

A partir daqui entramos num texto estilo Baudelaire onde vos tento contar o que senti com o mesmo fervor empírico com que o poeta se dedicou à análise dos consumos de haxixe. Em primeiro lugar, durante horas, um grande nada — é muito fácil compreender todos os que duvidam da chegada dos efeitos porque demoraram bastante (como o Fertagus para Setúbal, antes da redobragem de horários). Depois dessas horas, comecei a sentir um leve efeito, como se estivesse pedrado, mas ainda estava deveras operacional, a tratar o almoço da malta (acompanhamentos e tal). Só quando fui fazer xixi e olhei para dentro da sanita e era um ponto de fuga infinito até ao centro do mundo é que me apercebi de que os efeitos visuais já estavam a acontecer em directo no meu corpo. Ri-me, pisquei os olhos e sanita voltou a ser só uma sanita — sem truques de Trainspotting, sem mergulhos sanita dentro. Sem ser o meu xixi, claro, porque mesmo em cogumelos não acerto com pingas no rebordo e considero que isto é parte do meu processo de sofisticação em curso que me vai conseguir uma futura namorada. 

Efeito estúpido — pus a mesa e servi os almoços, mas quando me sentei… Não me apetecia comer. Que disparate depois daquela trabalheira toda de confeção. Convém saberem que eu estava a ocultar da minha amiga que estava em cogumelos para ela não ter ansiedade (um efeito secundário dos cogumelos parecia ser uma empatia enorme, mas já lá vamos). Confessei à minha mulher que não tinha fome e ela perguntou-me se “isso não é dos cogumelos?” Foi como se alguém tivesse ligado o meu apetite com um clique de botão. Do nada, comi tudo. Repeti, e limpei o molho que alagava o prato com uma fatia de pão no fim. 

E depois saí para o parque temático cowboy — devidamente vestido (talvez um cowboy carocho, sejamos sinceros). Às calças de ganga de trabalho, umas Levi’s 501, e às botas de trabalho, umas Timberland de pele, juntava uma camisa aos quadrados e um casaco de ganga. Descobri que Tabernas, mesmo em pleno Inverno, é uma terra amena — o que devia torná-la quentíssima no resto do ano. O parque sucedia-se em diversos edifícios que cumpriam uma função específica (saloon, arsenal, boutique), com muitos deles a oferecerem secções interiores igualmente decoradas para uma oportunidade de foto memorável. Era uma cena fascinante de ver em cogumelos, mas também adorava ter visto sóbrio (o que é uma conclusão importante nesta fase da minha vida). Só depois é que vieram as experiências mais divertidas. 

Sentado para ver um teatrinho western, apercebi-me de que a luz vinha de muito longe para reflectir no espelho que estava à minha frente. Ainda mais impressionante do que isso, parecia que a luz batia no espelhado e voltava para trás, provocando uma breve nesga de impossibilidade — como se a luz tivesse atravessado o cosmos apenas para perceber que tinha falhado a saída da ponte e agora tinha de ir dar a volta a Almada. Só que esta magia terminou rápido quando me apercebi que havia uma zona de animais e comecei a sentir tanta pena deles que esgotei a moca (tal como nos pânicos adolescentes em que a pedra da ganza desaparecia, ou naqueles mergulhos na Arrábida em que a água era tão fria para não nos acordar da dormência canábica). Também não me podia esquecer que tinha tomado os senhores fungos há umas oito horas nesta fase. 

Senti-me um cogumelo — imóvel e sem vontade de andar ao sol. Senti-me um elefante aprisionado num parque temático — porque era difícil não olhar para um animal daquele tamanho e não sentir pena da restrição da sua liberdade. Senti-me também um cowboy de uma era de ouro do faroeste — não tanto pela moca, mas porque era assim que estava vestido. 

Num epílogo inesperado, enquanto apanhava lenha à volta da nossa casa alugada, reparei em como certas sombras se tornavam figurativas e reparei nos mesmos efeitos quando via o fogo na lareira. 

Nessa noite, tive imensos pesadelos com a ingestão de mariscos. Quer dizer, apenas com um dos mariscos que tinha ingerido em Cádiz antes de chegar a Tabernas, chamado galeras de coral. Algures na moca dos cogumelos apercebi-me que era parecido com o pokémon Pheromosa e entrei em depressão de ter comido pokémons ao almoço. Enfim, ninguém me manda achar que estou acima dos veganos no consumo de proteínas, mesmo quando tive a decência de ter parado de comer animais bebés (com excepções apenas para as maiores celebrações católicas, vá, onde cabrito e cordeiro são obrigatórios). 

Na viagem de volta, dei por mim a agradecer a sorte que tinha tido de ter sido uma experiência tão pacífica, bastante satisfeito com a leveza e decerto entusiasmado para convencer os meus amigos a mais programas deste género (lembrei-me de que talvez fosse épico fazê-lo num estádio de futebol ou num concerto de uma banda que gostasse muito). 

Infelizmente, a minha experiência com os cogumelos não ficou por aqui. Quando, já divorciado e meio que a meio de um crush por uma escritora que parecia só gostar de mim pelo meu corpinho e pelos meus lábios, passei um domingo inteiro dedicado à tarefa hercúla de conseguir terminar o meu romance pela segunda vez. A primeira vez tinha sido destruída junto com o meu antigo macbook, num salto do meu gato que derrubou uma meia de leite sobre ele. Não sei de onde veio esta ideia, mas achei que se tomasse cogumelos outra vez, e numa dose maior do que aquela que tinha tomado nas férias em Tabernas, talvez conseguisse fazer avanços na minha nova focalização e no meu novo ponto de vista. 

E foi isso que fiz, o dobro da dose, quatro gramas de cogumelos só para o vosso amigo. O que talvez tenha sido estúpido, porque só parei de escrever e me apercebi que estava enfatuado por vilões e personagens secundários quando parei para comer tipo às seis da tarde e fui fumar um cigarro de pueblo à minha antiga varanda com vista-tejo (e daquelas duas gruas com nomes fixes). 

Foi nesse momento que me apercebi de que as cores do mundo estavam desajustadas no que toca à saturação — os amarelos aqueciam (ainda era verão), os azuis explodiam em nuances encantatórias e os tons de brancos sugavam o sentido do mundo em conjunto com a minha atenção. 

Para além disso, o céu era uma cúpula inteira, que me fazia rir ao compará-lo com aquela esfera que tinha visto na minha viagem a Las Vegas. Como se a minha percepção adulterada da terra me colocasse de forma voluntária dentro de um globo de neve. Ri-me muito, o que deve ter parecido bastante perdido se alguém me tivesse visto, mas voltei para o computador e escrevi até às duas e quarenta e cinco da manhã. Só parei porque tinha o meu olho esquerdo a piscar por vontade própria, o que me parece um alerta orgânico de excesso de tempo de ecrã. 

Agora a ler o livro, é impossível não me lembrar com algum carinho da forma como a minha percepção da vilania ganhou alguma humanidade face à empatia fúngica. E isto num ano em que a leitura do Hothouse me fez temer o morel como uma possível espécie capaz de controlar os humanos por telepatia, algo que acontece em dois terços deste livro. Se for o caso, obrigado aos cogumelos por me quererem melhor escritor — e por aquele doping de leve, num domingo em que adorei passar o dia com eles. 

Olá, obrigado por teres lido esta crónica, este ano vou escrever uma por semana até pingar um gig como cronista.
Se gostas da minha escrita e a quiseres apoiar, compra o meu romance Sinais de Fumo.
O meu nome é Alex Couto e eu amo muito a senhora literatura.

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Alexandre Couto Alexandre Couto

A escultura de Salazar

O Comité Crítico aproximou-se então da peça de Tyler The Creator. Era uma escultura humana, reluzente, em plástico. Caso estejam à procura de referências, não tinha absolutamente nada a ver com o trabalho barrento do Ron Mueck. Tinha um ar meio pop, meio cartoon, parecia chamar-nos até si para a explorarmos em maior detalhe.

— Parece uma sátira àquele museu que serve de armadilha para turistas nas grandes cidades, a plasticidade realista parece ser a mesma, não acham? — perguntou Daniel Tigre, informado como sempre.

Isso, claro, até ao horror de nos apercebermos de quem era. Os membros examinadores do comité aproximaram-se da peça e não conseguiram evitar o choque completo. A escultura retratava o antigo ditador de Portugal, o Salazar. Odiado por todos os que se achavam a favor da liberdade (muitos não faziam nada por ela, nem quando sabiam o impacto que podiam ter), outros sempre babosos de um futuro em que Portugal pudesse ser tão chalupa como quando achava que podia dominar o mundo a seu bel-prazer (dominava apenas povos com recursos bélicos inferiores aos seus).

Horácio Frutado foi o primeiro a comentar, algo em choque: — O Tyler sabe o que este homem pensava de pessoas como o senhor? — claramente a criticar como alguém negro podia ser fascista, o que era um argumento algo válido depois da brutalidade da guerra colonial que Salazar encetou por obsessão patriótica.

— Desculpa Horácio, tens toda a razão em perguntar isso, mas antes de continuarmos... O Tyler pode nos explicar o que é que tentou fazer com essa escultura? O porquê desse tema? — perguntou Daniel, num malabarismo mediático.

— Então foi assim. Quando eu fui estudar o neo-plasticismo aqui à Biblioteca dos Coruchéus — e levantou dois dedos para a câmara como se se congratulasse a si próprio por se ter lembrado de referir a Biblioteca como a Câmara Municipal pedia sempre — Apercebi-me que aquilo não tinha nada a ver com plástico. Plástico, nada. Eu curtia o Mondrian quando era puto, mas não era aquela a forma que queria comentar o mundo. Eu só queria fazer uma piada idiota de que fazia artes plásticas através de um trabalho em plástico, mas quando comecei a ver o tempo que demorava fui aperfeiçoando a ideia até à sua forma final. Shout-out para o Alex do Ateliê 1 que esculpir é uma trabalheira do pior.

— Tyler, nós acreditamos que toda a arte é política. A ideia de fazer um trabalho que não seja político é apenas uma vitória do neo-liberalismo. — disse Horácio.

— Tyler, porque é que decidiu fazer uma representação simpática de um dos maiores ditadores da história da Europa? Não nos vais dizer que esta escultura é contra o Salazar, pois não? — perguntou Cristina, outra das júris.

— Pró Salazar? Ainda não devem ter visto o outro lado — disse Tyler The Creator a rir-se.

O comité crítico, ainda meio ofendido, ficou em choque quando viu a parte de trás da peça. Esculpido com mestria, uma das mãos de Salazar na cintura estava a afinal a baixar ligeiramente as suas calças, revelando um rabo branquíssimo que contrastava com o fato preto. Talvez o mais chocante dessa traseira fosse que o orifício estivesse cavado em profundidade, dando a possibilidade de penetrar a figura do antigo ditador de Portugal, quer com os dedos, quer com algum objecto (até esse).

Enquanto os olhares do comité crítico sugeriam aquela dúvida de que vemos tantas vezes nos moderados (por um lado desejar o progresso, por outro lado temê-lo muito mais que todos os radicais), Tyler não ficou satisfeito.

— Então? Quem é que vai pôr os dedos aí dentro? — perguntou ele, algo indignado de ainda ninguém ter tentado.

De forma algo radical, o futebolista do júri chegou-se à frente. Daniel ajoelhou-se no chão como nas fotografias do plantel e meteu dois dedos dentro do buraco que fingia ser o outro buraco que tão bem conhecemos. A reacção dele não demorou:

— Ugh, isto é nojento! — disse ele, antes de se afastar com um salto. De onde teve os dedos ainda há pouco, surgia agora uma gosma verde-neón, que escorria de forma lenta pelas pernas da escultura.

— Olha, quem disse que o avacalho não pode ser uma forma de reparação histórica? — lembrou, e bem, Tyler.

O júri estava em choque. Se por um lado não queria ter um artista negro a homenagear Salazar, também sabia que ter um avacalho tão avassalador ao Salazar em plena competição também ia chocar a fatia da audiência portuguesa que se identificava como fascista e outra, maior ainda, que era fascista como tudo, mas fingia apenas ser conservadora.

— Tyler, o que é que você estava a pensar com isto?

— Os miúdos adoram slime, os pais e as mães adoram meter coisas no cu… Tentei fazer uma peça que agradasse aos públicos de todas as idades. – disse ele, com um sorriso, antes de ajeitar o boné verde de felpa e fazer um sinal de fixe para a câmara.

O júri não teve hipótese. Teve de pedir uma pausa à produção para reflectir em como é que se ia safar desta.

Olá, obrigado por teres lido esta breve reflexão no contexto artístico, tenho escrito muitas delas para o meu próximo romance. Se gostas da minha escrita e a quiseres apoiar, compra o meu romance Sinais de Fumo. Gostava muito de lançar “Capital da Arte” já para o ano, algo que só depende da minha ginga. O 25 de Abril foi o dia mais lindo da nossa história

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Alex Couto Alex Couto

Um momento sensível para a leitura de Dune

Desde que comecei a leitura de Dune, a obra-prima de Frank Herbert, o mundo real, onde continuo a viver nos intervalos da ficção científica, mudou.

 

O ataque terrorista do Hamas (que condeno) deu lugar a um conjunto de bombardeamentos sobre a faixa de Gaza (que também condeno). Nestes dias conturbados tem de ser assim, usamos as nossas condenações como um crachá de humanismo e de decência. Face a este conflito e aos efeitos que teve nas pessoas — tantos das que sofrem com ele, como aquelas à minha volta que se posicionam perante ele — a minha relação com uma história onde o protagonista tanto teme a Jihad, como sabe que está prestes a chegar, deixou de se passar a milhões de quilómetros cósmicos e tornou-se mais próxima, no território autocolante da metáfora.

 

Mais do que a prosa, que me surpreendeu pela positiva face a tanto burburinho on-line acerca da sua incompetência técnica, foi mesmo este poder de analogia que acabou por impactar, primeiro de forma sub-reptícia e depois de forma avassaladora, a minha leitura.

 

Em Dune, acompanhamos a família Atreides na saída do seu planeta-natal de Caladan em direcção a Arrakis, o planeta-duna, ponto de grande interesse político para toda a galáxia devido à produção de Spice (uma espécie de petróleo para viagens galácticas, mas que também dá altas pedras e olhos azuis). Logo aqui, há algo de Leon Uris no seu calhamaço Êxodus, um banger que assisti à minha mãe reler várias vezes durante a minha adolescência e estamos a falar de um livro que compete com o Dune em termos de puro volume de páginas.

 

Só que assim que chegamos a Arrakis e damos de cara com os Fremen (do olho azul supracitado), percebemos que este povo foi mergulhado numa conspiração religiosa e aguarda o seu Messias para proceder à sua libertação.

 

Por muito que gostasse de focar a minha leitura de Dune na caracterização do Paul Atreides ou da sua mãe, Lady Jessica, é imperativo que o primeiro ponto de análise seja uma extrapolação entre a realidade do conflito entre Israel e Palestina e a trama política que vemos na obra.

 

Também em Dune há interesses externos a comandar a vida das pessoas — líderes que comandam à distância com toda a frieza que o trabalho remoto permite, assim como supostos líderes que se revelam vassalos quando sabem que a sua opinião sincera pode trazer inimizades, que por si só trazem sempre despesas (algo terrível numa era em que o lucro parece comandar a vida).

 

Não é preciso perceber muito de política para sabermos que às vezes basta alguém escolher o caminho do degredo ou da violência, para muitos outros arranjarem formas de o justificar. Numa era de polarização, em que assuntos complexos são muitas vezes reduzidos a um binómio de apenas dois posicionamentos possíveis, toda a nuance será guiada até à violência, ou, pelo menos, até ao conflito.

 

Eu lido bem com a violência na ficção — devido à minha própria biografia, o conflito físico sempre foi tanto uma admiração, como um assombro. Ainda hoje lamento algumas vezes em que não andei à porrada, tal como noutras me arrependo das humilhações em que me envolvi porque não controlei a minha própria raiva. Como jovem autor, esta tendência para a porrada acabou por ter um papel notório no meu primeiro romance, onde falhei várias vezes a sua contenção. O Dune também é muito sobre isto, sobre escolher as guerras certas para comprar, o momento certo para atacar.

 

A abordagem mitológica que o Dune faz da luta, uma eterna profecia por cumprir, está organizada de forma hierárquica consoante os povos. Se os Harkkonens são fortes, os Fremen são mais fortes porque estão desesperados, refugiam-se num combate em guerrilha que pode ser a sua única possibilidade de defesa. A tropa Sardaukar, que o Imperador cultiva num planeta recôndito, é conhecida pela sua violência e pela forma como só aceita a vitória. Durante a leitura, leves comparações entre estas facções e os protagonistas do conflito a que voltamos a assistir no Médio Oriente foram possíveis, mas a grande maioria das vezes parecia ser só sugestão minha, a encontrar semelhanças entre dois assuntos que me consumiam tanto tempo.

 

Tal como na vida real, o Dune não se acanha de colocar a religião como um dos grandes culpados na erosão da proximidade entre os homens — vai mais longe, faz da religião uma espécie de conspiração que actua de forma sombria nos nossos interesses, a comandar as nossas expectativas. Ora através daquele elemento feroz que é a esperança, ora como gatilho final para levar os homens da vida à morte mais digna, aquela que acreditam ser honrada, mesmo quando é combativa. É claro que a caracterização destas crenças tem um estilo próprio, mas não deixamos de reconhecer a nossa realidade nessa forma de revelar a violência como a única saída possível.

 

Frank Herbert não coloca Paul Atreides a comandar uma cruzada, nem uma reconquista. O termo é Jihad — e parece carregar nele uma certa certeza de que há um direito intrínseco à rebelião contra a opressão. Será um proxy para defesa da Palestina? Será que o Frank Herbert está a defender a acção terrorista em vez de soluções políticas?

 

Não me parece. Acho que o conflito nos afasta da racionalidade. Acho que o ódio é uma energia difícil de dissipar. Acho que quando um povo é obrigado a recorrer ao pior de si para sobreviver, a escalada de violência é cada vez mais terrível. Acho que há um aviso acerca do quanto o colonialismo é uma prática terrível, que obriga os povos a lutarem da forma mais degradante para si e para os seus adversários. Acho que o meu desdém pela forma como o Hamas invadiu o território israelita é um sinal de que vivo a minha vida de forma pacífica, mas a incompreensão acerca da situação que deixou uma população às mãos de um grupo terrorista radical também demonstra o privilégio de nunca ter tido de me revoltar contra um opressor.

 

Eu condeno tudo com sinceridade. Não sou um rapaz acanhado quando chega a hora de consumir conteúdos gore e o que vi da invasão do Hamas foi de uma brutalidade que não esperava. Há um tipo de sangue, escuro, quase preto, na verdade, que associo a alguns dos momentos mais traumáticos da minha vida — quando a minha avó teve um AVC precisamente no momento em que limpava as janelas e pintou a casa de esguichos de sangue arterial, assim como a vez em que o meu amigo se meteu numa confusão por causa da bicicleta que lhe roubaram e acabou esfaqueado até ao tendão. Se tivesse de dar uma cor à maldade seria essa, o momento em que o bordeaux deixa de ser Griffyndor e se torna violência entre os homens. Uma cor que encontro no Dune, entre tantas outras tonalidades nobres e naturais, mas que também encontro na vida real, no LiveLeak e nos clipes de vídeo que juro a mim próprio que nunca mais vou ver, até os ver e rever em pesadelos que ditam a minha sensibilidade face à violência.

 

Este que foi o mais fascinante livro de ficção científica que encontrei no meu curto percurso de dez ou doze livros do género, também acabou por ser o que mais se confundiu com a realidade à minha volta, mesmo quando a distância entre a imaginação e a galáxia mais distante é visível e invisível em simultâneo.

 

Pode ter sido uma mera consequência do momento, mas acredito que a minha leitura desta obra vai ficar envolta na brutalidade do conflito no Médio Oriente, assim como a minha percepção deste conflito foi informada pelo laboratório de pessoas e emoções que Frank Herbert desenvolve ao longo do Dune. No meio desta confusão entre realidade e ficção, fica uma certeza: um desejo de paz que, idealmente, não seja servida pela mão da morte.

 

“The Fremen were supreme in that quality the ancients called "spannungsbogen" -- which is the self-imposed delay between desire for a thing and the act of reaching out to grasp that thing.”

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Alexandre Couto Alexandre Couto

Dançar até ficar mal-disposto, breve reflexão sobre O Tango de Satanás

“Todos os estranhos do mundo estão no meu comprimento de onda.” – é uma citação do Thomas Pynchon que abre bem uma reflexão crítica sobre a leitura do Tango de Satanás de László Krasznahorkai. Onde se lê estranhos, também se podia ler apreciadores degenerados do pós-modernismo.

 

Quem me conhece sabe que eu estou sempre a falar sobre pós-modernismo. O exemplo mais degradante veio na edição passada do Primavera Sound em que tentei convencer não só os amigos, mas também as colegas de casa, de que a realização dos concertos da Rosalía e do C. Tangana trazia elementos pós-modernos de subversão de formatos para as artes performativas. Era fácil perceber isso através de códigos cinematográficos (cenas Almodóvar-escas), documentais (correlação entre a performance e as filmagens pessoais) e de forma como aproximação à intimidade (videochamadas em directo, planos inspirados em FaceTime). Não é segredo nenhum para quem me acompanha online que eu tropeço em longos discursos teóricos para desespero de quem está à minha volta.

 

Tudo isto estava dentro de mim devido à minha dieta mediática de fortes inspirações pós-modernas, mas explodiu com a cadeira da Arte do Romance, onde tive o prazer de ser guiado por um professor que me ajudou muito. Até um rapaz algo lento de compreensão como eu consegue atingir o progresso quando repara nas rupturas do modernismo de forma justaposta com as invenções do pós-modernismo.

 

Antes de chegar ao Tango de Satanás, é preciso referir as paragens obrigatórias onde ganhei forças para agora conseguir navegar a longa reza ao diabo que são os capítulos mono-paragrafais que este livro nos traz. No White Noise, do Don DeLillo, dei de caras com um diálogo fragmentado, multi-direccional, cheio de significado e de banalidade em simultâneo. No A Visit From The Goon Squad deparei-me com esta ideia de que as personagens podem ser estafetas de uma história, não a levando do início ao fim, mas carregando o testemunho enquanto os holofotes incidem sobre si. Na verdade, agora que penso nisto, esta é capaz de ser uma das características que mais gosto no Vernon Subutex da Virginie Despentes.

 

No Tango de Satanás, temos tudo isto ao mesmo tempo. Ao visitarmos a antiga comuna perdida algures na Hungria, encontramos a sátira ao regime soviético, mas encontramos também a miséria e muitas invenções a serem feitas com ela no romance. Temos a sátira, com o sentido de humor que tende a exigir, mas também temos o horror, o religioso e o respeito pelo sobrenatural. Só num livro muito crente é que damos por nós a pensar se o Irimias é messias ou vigarista tantas vezes que acabamos a obra sem resposta (mas inclinados para uma delas).

 

Há dois atributos deste romance que me fazem gostar muito dele. O que faz com a linguagem, mas também o que faz com a forma.

 

O que faz com a linguagem é bastante perceptível. As longas sequências em cada um dos capítulos parecem elevar a narração e o diálogo a um burburinho impossível de desligar, onde surgem pensamentos fora de sítio e temos a sensação de que o terreno onde a obra se passa está tão amaldiçoada que chega a permear o espaço da obra. Mas não é só isso, há outros detalhes desta linguagem que se tornam contagiantes e dignos da nossa maior atenção.

 

O que Krasznahorkai faz com a chuva, sempre presente à volta das personagens, é a criação de um espaço mental assente na força do vocábulo, como um pintor que trabalha o vantablack de forma a maximizar a força do seu chiaroscuro. No prefácio do Casanova que estava na edição da Antígona que li, havia refência à quantidade de vezes que a palavra chuva aparecia e era assim algo próximo de uma brutalidade (tipo duzentas vezes na obra, o que certamente marca um espaço intelectual e força a sensação de chuva de forma divina sobre o leitor).

 

Ainda assim, fiquei muito mais admirado com o seu trabalho com as aranhas, onde em vez de fazer delas uma figura omnipresente, joga com a progressão, deixando-as ora mais próximas, ora a deixarem os personagens à beira de um ataque de nervos em relação à impossibilidade de limpar as suas teias. O endgame desta brincadeira com aranhas é algo de mágico, que chega na viragem da metade do livro e que provoca uma cena sublime, onde a nossa paciência é recompensada pela beleza da escrita e das imagens onde se cristaliza.

 

O que Krasznahorkai faz com a forma também é digno de um mergulho teórico, mas já foi escrito tanto acerca disto que fica difícil não tropeçar num cliché. O livro está dividido em duas metades e se a primeira metade parece andar para a frente, a segunda metade parece andar para trás. Especialistas em dançar o tango vão reconhecer este andamento, assim como a subversão conceptual da forma. Eu tenho dois pés esquerdos e mesmo assim senti esta dança, aqui exagerada pela sensação de incerteza.

 

Num detalhe divertido, este livro parece deixar-nos algo pedrados, mesmo quando o lemos sóbrios. A sucessão de frases ganha uma embalagem tal que chega a parecer hipnótico, ou como li na entrevista da Paris Review ao autor, narcótico. É fixe essa sensação, a boa literatura sempre teve o mérito de nos desencaminhar do real. Para acabar, uma citação que demonstra como até para o Krasznahorkai tudo isto tem piada. Até deixar de ter, claro:

 

“Get it into your thick head that jokes are just like life. Things that begin badly, end badly. Everything's fine in the middle, it's the end you need to worry about.”

Se gostava de ter esta crónica literária descontraída, mas sempre divertida e repleta de referências culturais, na sua revista ou jornal de prestígio, eu teria muito mais gosto em fazê-lo do que folhetos ou brochuras corporativas. Contacte-me através do e-mail alexandre.dscouto@gmail.com para solicitações do género.

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Alexandre Couto Alexandre Couto

Tudo o que perdi quando fui roubado em Serralves

Está tudo bem. O assalto foi ao carro, enquanto eu e a Maria Rita, assim como o Diogo e a Carolina (tínhamos passado uma semana fantástica no Gerês juntos), estávamos a ver as esculturas fantásticas do Anish Kapoor.

Acho que estávamos tão entusiasmados com esse chamariz cultural como tínhamos estado acerca da viagem ao recôndito da natureza, o que se calhar justifica a burrice de ter deixado a minha Eastpak cinzenta com o meu MacBook na bagageira do carro.

Sim, essa foi uma das coisas que me roubaram em Serralves. O meu computador, que naquela altura já não era bem um computador, mas sim um fóssil de alumínio. Já o tinha desde 2011 e, pelo contexto, queria que durasse para sempre (mesmo quando me arrependia de lá ter colado autocolantes da Supreme e do Adventure Time).

Tinha sido uma prenda dos meus avós quando recebi a bolsa de estudos e perceberam que não tinham de investir a totalidade dos três mil euros que tinham poupado para que me conseguisse licenciar numa universidade pública. O que é que fizeram? Investiram-nos à mesma, para me relembrarem que enquanto estivessem vivos, eu teria sempre uma vantagem competitiva no mundo (tal como agora tenho essa lembrança, uma vantagem que o tempo não consegue apagar).

Quase tão importante como o contexto do computador, era o momento. Nós estávamos em 2018 quando foi esse assalto, o computador tinha sete anos. Eu já devia ter saído do Shifter há dois anos para acabar o meu romance, mas até esse momento tinha apenas um romance escrito duas vezes e cada uma pior do que outra, numa pescadinha de rabo na boca de pura mediocridade. Fiz back-up do progresso da terceira versão que escrevia, numa de que nunca se sabe o que pode acontecer.

Tem graça que foi durante essa terceira redacção que encontrei o tom, salvo erro até ia mais feliz para as férias porque tinha visto algo de criativo e de único para resolver essa obra (hoje sei que apenas fiz o mesmo que o Carlyle quando escreveu sobre a revolução francesa, utilizar um pronome colectivo para dar uma maior sensação de imersão na realidade da obra).

Dentro desse Macbook estavam não só todos os meus textos até à data, como aquele texto que provocou a maior vergonha da minha vida. Salvo erro chamava-se “Uma lista prática de tudo o que vos torna básicas” e era precisamente isso, um apontar de comportamentos que eu achava básicos, como postar sushi no instagram ou idealizar um Fiat 500 (como se eu não fosse tão ou mais básico). Guardei esse texto, assim como o arquivo do blogue chungaforever no ambiente de trabalho, mas nunca o coloquei num disco externo, nem na cloud. Não deve ser preciso dizer que lhes perdi o rasto até hoje, aposto que só vão voltar a aparecer quando for para ocupar um cargo importante qualquer e os meus inimigos se lembrarem disso para destruirem a minha credibilidade (a minha tatuagem da Cruz da Ordem de Cristo, da qual também me arrependo, pode fazer o mesmo sem ser preciso vasculhar tanto).

Agora que penso nesse roubo, apercebo-me que ter ficado sem todos os meus textos foi das maiores benesses que me foram dadas. Perder todas aquelas certezas que se têm quando se é jovem, ajudou-me a escrever de forma mais leve e directa, com muito menos peneiras. Os meus tópicos eram todos Setúbal, todos adultério e todos criminalidade, não deixa de ser poético que tenham sido roubados. Quando voltei, tinha a certeza que era preciso despachar a fase Setúbal da minha carreira, acabar o romance de vez, tratar daquelas memórias mais traumáticas sob a forma de contos.

Ainda assim, não era só o computador que estava dentro daquela mochila Eastpak. Também tinha o livro On Writing do Stephen King — uma leitura de que gostei tanto, que decidi deixar a última página para ler noutro dia, para tentar saboreá-lo mais um pouco. Ainda hoje digo que só escrevo mal porque me roubaram esse livro antes de o ter conseguido acabar, mas toda a gente percebe rápido que é uma tentativa de parecer humilde.

Os meus calções Ralph Lauren, num azul turquesa que parecia as águas da Arrábida em pleno verão, tinha sido um achado: 22€ no El Corte Inglés. Ao contrário dos calções, ainda tenho o talão dos saldos. Não doeu muito em termos financeiros, mas tinha um orgulho tão grande em ter aproveitado essa promoção. Até porque ainda não sei quando vou fazer o upgrade para Villebrequin, algo que ainda não está ao alcance do meu bolso (ou melhor, dos conteúdos dele).

Também havia t-shirts brancas e cinzentas da Uniqlo, as minhas favoritas para compor os fits minimalistas em que gosto de me aperaltar. Felizmente tinha uma vestida, se não tinha de ir em tronco nu até Lisboa.

Num grande bónus para os meliantes, somava-se aos itens já descritos, o facto de que dentro da minha mala havia também um pote de vidro, daqueles com fecho hermético, onde se somavam cerca de quinze gramas de produção de canábis, tanto caseira, como artesanal. Imagina a facada que foi para um pequeno produtor como eu, saber que tinha perdido a totalidade das suas colheitas.

Ainda hoje me rio a pensar na cara dos tropas que chegaram a casa e abriram aquela Eastpak. Qual dos itens os terá feito mais felizes? Decerto o MacBook, que podiam vender e revender para um maior lucro, mas não devem ter dito que não ao toque cítrico daquela Pineapple Express cuja denominação de origem protegida era literalmente a minha varanda no Bairro da Lapa.

Foi a última vez que deixei a mochila no carro. Posso ter ficado sem muita coisa, mas agora tenho este texto.

Se gostava de ter esta crónica literária descontraída, mas sempre divertida e repleta de referências culturais, na sua revista ou jornal de prestígio, eu teria muito mais gosto em fazê-lo do que folhetos ou brochuras corporativas. Contacte-me através do e-mail alexandre.dscouto@gmail.com para solicitações do género.

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Alexandre Couto Alexandre Couto

Acerca dos meus New Balance 990v2

No outro dia estava a ler o Battle Royale e tropecei no entusiasmo de um dos protagonistas acerca dos ténis importados de outra personagem. Ele usava New Balance, ao contrário das marcas domésticas que a política do livro parecia priorizar.

 

Nesse instante, vi toda a minha vida de apreciador de sapatilhas a passar a correr pelos meus olhos. Relembrou-me a forma como a minha paixão por ténis passou de uma escolha sub-cultural orientada para o conforto e para o estilo, a um hábito viral que me fazia encolher de cringe qualquer consumidor, face à forma como deixaram de ser um hábito saudável e se tornaram uma obsessão global.

 

Isto é um fenómeno que me tem atormentado ao longo de muitos aspectos na minha vida. Também a publicidade, uma paixão sincera durante anos formativos, se tornou uma relação complicada aquando da minha progressão intelectual. Quanto começamos a acrescentar nuances à forma como vemos o mundo, percebemos que uns sapatos não são só uns sapatos, podem ser muito mais do que isso. O mesmo se passa com um anúncio (ou com quase tudo).

 

Afinal, há muito acerca de ténis que é ridículo. A forma como têm ciclos de tendência revela como não são só um calçado cool (o que está a acontecer neste verão com os Samba é muito parecido com o que vi acontecer com os Stan Smith em 2014), são literalmente uma forma de defesa contra a pouca compreensão que temos da realidade do mundo, tornando-se quase uma forma de auto-defesa. Se eu estiver a usar os ténis mais cool do mundo neste momento (que para mim seriam Sambas ou 550’s, curiosamente dois pares que não tenho e que não estou a morrer de vontade comprar), talvez haja algum aspecto deste universo louco em que ainda tenho controlo. Lembra-me também como o zeigeist é um sítio tóxico, percebê-lo, nem que seja num só aspecto mínimo como aquilo que trago nos pés, pode trazer-nos tranquilidade face a inflações, política externa e, claro, o que raio vai na cabeça das pessoas.

 

Outro dos problemas que atormentaram a minha relação com ténis está próxima do ponto acima, mas consigo levá-la um bocadinho mais longe.

 

A cultura do hype fez muito por destruir o amor que ainda tinha pelo design de sapatilhas, porque sempre que aparecia um modelo que captivava a minha atenção e me fazia sentir borboletas nas solas dos pés, raramente conseguia comprá-lo. Porquê? Os motivos são muitos, bots nas filas de compras, edições limitadas e reduzidas, uma espécie de preferência por enviar o stock para influencers de forma a que as pessoas os desejem, apenas para não os conseguirem comprar. Todos estes dramas estão relacionados com uma escassez artificial do produto que a mim me irrita particularmente e que não bate certo com o meu perfil de consumidor (sou alguém que compra tão pouco e tão poucas vezes, que não vou me contentar nunca com uma segunda opção).

 

No meio disto tudo, voltei a apaixonar-me por uns ténis. Em primeiro lugar, apaixonei-me pelo preço. Eram caríssimos. Isto só podia ser uma espécie de prova de que seriam óptimos, confortáveis e estilosos, mesmo numa era em que a maioria dos ténis é cara só porque sim. Estes eram ainda mais caros que os ténis que eu normalmente acho caros e isso teve o efeito oposto em mim, parecia que queria descobrir por que raio é que este modelo podia ser assim tão overpriced.

 

Felizmente, o que não falta a quem tem interesse em ténis, são canais onde são vítimas de comentário, assim como de maus-tratos desconstrutivos, que nos ajudam a perceber a qualidade da sua confecção. No Youtube daquele rapaz que corta os ténis com recurso a uma motoserra de mesa, percebi que a confecção era realmente jeitosa, preparada para aguentar um uso intenso (eu não sou muito de rotações, quando tenho alguma cena que curto uso demais, como um personagem de anime cujo criador tem recursos limitados).

 

Outro motivo que me fez querer estes ténis foi uma daquelas razões conceptuais absolutamente desnecessárias que só existem na minha cabeça e que me levam a perseguir objectivos que são muito difíceis de descodificar para os outros. Eu admito: Como é que podia ir de férias aos Estados Unidos, sem levar uns ténis que fossem feitos nos Estados Unidos?

 

A ideia é idiota, mas os 990 são das poucas gamas da New Balance com produção em solo norte-americano, o que também justifica o seu preço elevado. Como ia estar a pisar alguns dos locais que mais associo à minha ideia de América (aquela que nos é imposta através da dieta mediática popular), queria celebrar isso com os ténis locais. Já agora, levando estes ténis de volta à América, para voltarem a casa. A minha obsessão pelos sentimentos de objectos inanimados pode ser culpada pela Disney ou pelos Beyblades.

 

Se pensarmos bem, é um disparate, porque podia tê-los comprado lá e ficavam com um custo carbónico mais sensato, em vez de estarem a viajar para a Europa só para regressarem a casa. Ainda assim, andei alguns meses com eles por cá antes do tão desejado retorno a casa. E enquanto andava na América, reparei muitas vezes no USA que dizia nas sapatilhas e achava divertido como andava a passear com eles.

 

Fora de brincadeira, são muito bonitos. As linhas desportivas afastam-nos daquelas versões maçudas que podemos considerar dad shoes, apesar de também cumprirem esse papel se for preciso. Ficam muito bem com calças de ganga, para look super-americano, mas também funcionam nos meus looks de verão que consistem em andar de calções de banho e t-shirts oversized pela cidade como se isso fosse uma escolha sensata. Teve graça porque em Los Angeles descobri que esse é o fit mais regular dos locais, se bem que não se coíbem de usar calções de basquetebol e t-shirts de marca (idealmente designer, quase sempre com os logos grandes a fazerem publicidade ao tamanho da carteira do dono).  

 

Só não sabia é que me ia estar a meter noutro fenómeno quando os comprei. Pelos vistos, o meu colorway neutro é uma sacada do Teddy Santis (não comprei os cinzentos das influencers, mas sim uns brancos, bege e cinza para maior versatilidade). Eu, que já caí várias vezes na cilada da Aimé Leon Dore de actualização dos clássicos casuais norte-americanos, dei por mim a comprar uns sapatos cuja palete foi escolhida pelo director criativo da Aimé, agora também director criativo da New Balance.

 

Nunca tinha tido uns New Balance porque achava sempre o “N” lateral demasiado grande e porque a primeira vaga que bateu em Portugal era super orientada para sneakerheads (para isso continuava a usar Nike como sempre), mas apercebo-me agora que se calhar o trabalho do Teddy com a marca (e as collabs com a Aimé) também os revitalizaram na minha mente.

 

Para rematar o texto, só uma reflexão ergonómica sobre como parecem ter o canhão dos ténis ligeiramente mais largo, o que evita aquele fenómeno de redondo frontal que os Nike acabam por ter imenso. Obrigado pela paciência para este texto, vamos às botas Chelsea no próximo.

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Alexandre Couto Alexandre Couto

Breve crítica ao Battle Royale

Face à folha em branco, estou a estalar os meus dedos como se fossem tiros de shotgun - dois de seguida - para mostrar à tarefa da escrita que estou armado de metacarpos maquiavélicos e que não a temo, de todo. Só que agora é impossível não me lembrar do Battle Royale quando cruzo referências com armas de fogo.

 

Eu não posso negar, eu gostei muito do Battle Royale. Era o tipo de livro que tinha tudo para que odiasse (demasiado thrillery, crítica política da batata, romantização da violência), mas acabou por não revelar nada disso. O thriller era efectivamente, a crítica política começa a tornar-se tão inevitável face ao jogo que dá a sensação de que o jogo foi uma invenção para criticar a política e a romantização da violência serve sobretudo como um alerta para a forma como continuamos a persegui-la e a torná-la uma busca por beleza nas sociedades contemporâneas.

 

Caso me esteja a precipitar, vamos dar um passo atrás (algo que nem toda a gente tem hipótese de fazer neste romance, ora porque vai cair de um precipício, ora porque já apanhou uma septicémia, é um romance muito forte para quem gosta de septicémia como elemento narrativo). O Battle Royale é um fenómeno de culto que vendeu um milhão de cópias no Japão em apenas um ano, após ter recebido uma nota de repúdio da versão japonesa da Assembleia da República. Conta a história de uma turma que vai participar no Programa – ou seja, é a turma que vai participar na matança colectiva numa ilha da Republic of Greater East Asia (cuja bandeira parece uma mancha de sangue circular sobre uma toalha branca, hmmm).

 

É impossível não o enquadrar num certo grito desesperado da população japonesa em repressão à brutalidade do seu país sobre a juventude. Talvez exagere numa correlação com o Death Note, mas encontrei-a numa crítica on-line e fiquei a pensar como uma certa sensação de ser justiceiro passa do protagonista desse trabalho para o narrador deste. Não é por acaso que a personagem do Kazuo Kiryama, um dos mais violentos participantes nesta edição, acabe por ter merecido um clube de fãs tão grande como o Light do Death Note. Esta fúria contra o bullying, assim como a ideia de que o bullying vem do próprio sistema política merece ser sublinhada à partida.

 

O atributo principal deste livro é que não dá para pousar. Simplesmente não dá, eu precisava de saber se a capa tinha denunciado o desfecho feliz (na medida do possível) entre Shuya e Noriko. Trillherzaço, prosa contida para aumentar a tensão, com boas bicadas ora intelectuais, ora humorísticas. A prosa é cristalina, transparente, quase despersonalizada. Ok, a dada altura começa a fazer piadas, é particularmente feroz com a repressão que se vive no país e também revela alguma curiosidade adolescente a navegar as peripécias de quarenta pessoas de apenas dezassete anos obrigadas a matarem-se para sobreviver.

 

Uma das características que mais gostei neste livro foi a forma como adivinhou a gamificação do mundo e como o conseguiu enquadrar isso de forma a torná-lo ainda mais viciante. Eu gostei muito do elemento de informação que era colocado no fim de cada cena, em que se anunciava quantos alunos ainda sobreviviam nessa página. Também gostei muito da aleatoriedade nas armas que os alunos levavam para a ilha, mas isso não vou spoilar nesta crítica porque tem muito sentido de humor digno de ser experienciado em primeira mão (mesmo quando é sádico).

 

Se há glamorização da mutilação dos corpos e da violência desmedida? Não sei, eu teria tido tendência para sobre-escrever (tradução possível de overwrite) muito daquilo, então até vejo como algo contido. É gore? Sim. É gore e depois ainda vai meter o dedo na pocinha de sangue e escrever numa parede branca que é gore? Não, de todo.

 

Para além do facto de que não dá para pousar, gostei que tivesse muita, muita consciência de classe. Muita noção de que os putos tinham assimetrias sociais entre eles e isso a fazer parte da caracterização mental das personagens, talvez uma das tangentes mais fáceis de meter no trabalho só por homenagem ao real em que vivemos. Quer fosse porque a pobreza os tinha condenado a um desfecho triste, quer fosse por uma certa apatia que vinha do seu bem-estar financeiro, havia no livro uma resposta há forma como a nossa grana e exemplos familiares próximos têm uma repercussão enorme na forma como vivemos as nossas vidas — a rebeldia tanto pode ser um acto de ruptura como a continuação de uma longa tradição familiar.

 

Acerca do resto do elenco, eu já tinha entrado na obra com muita curiosidade acerca da Mitsuko e não desiludiu. A minha mulher é fã de Mitsuko Souma ao ponto de já ter dado este nome como username em videojogos. Ainda assim, é difícil para mim como pessoa com conta alguma sensibilidade em relação ao male-gaze lidar com as situações que o livro lhe apresenta, sobretudo em relação ao seu passado. Eu acho que foi tratado com bastante elegância, mas tive de reflectir um bocado para chegar a esta conclusão. Se tiverem opiniões acerca disto, digam-me que também gostava de as saber.

 

Ainda assim, há coisas bem podres nesta obra. Uma delas é o facto de Shuya Nakahara ter demasiado candy. Honestamente, eu acho que vou passar a dá-lo como exemplo de excesso de candy nas minhas aulas de storytelling. É que o puto tem tudo, ora tocar rock, ora ser estrela de basebol, groupies e guitarras é sempre bom clichê. O facto de ter várias damas apaixonadas por ele de que nem se apercebe demonstra que o jogo tinha um protagonista forte (mesmo que mau guerreiro, mas sempre a sobreviver por milagre).

 

Enfim, excesso de candy à parte, o final é uma banhada tão grande que nem vou dar spoiler. Se curtirem de finais felizes vão com tudo porque é mesmo lame, sobretudo depois de tanta crueldade. Aliás, tanto tempo em tensão para acabar com uma cena que nem sequer precisava de estar no livro. Vamos acreditar que é para dar alguma esperança aos adolescentes deste mundo, que bem devem precisar dela.

 

É natural que um livro tão ciente da cultura gamer e das suas próprias mecânicas internas de gamificação, acabe por também ter um impacto nela. Ainda assim, acho que ninguém esperava a forma como o modo Battle Royale fosse dominar o mundo até ao seu ápex máximo que deve ter sido o fortnite. Na primeira página do Battle Royale, é apresentado como um herdeiro do wrestling e dos combates entre múltiplos lutadores, onde as alianças duravam pouco até à traição. Olhando para o seu impacto na cultural popular e nas réplicas que vêm daqui (Hunger Games e Squid Game, por exemplo), acabam por sublinhar os muitos méritos desta obra.

 

 

Se gostava de ter esta critíca literária descontraída, mas sempre informada e repleta de referências, na sua revista ou jornal de prestígio, eu teria muito mais gosto em fazê-lo do que folhetos ou brochuras corporativas. Contacte-me através do e-mail alexcoutoconfidential@gmail.com para solicitações do género.

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Alexandre Couto Alexandre Couto

Há com cada par de cornos

As cenas estavam a começar a correr um bocado mal na vida do Igor. Na semana passada o cota dele tinha estado todo bezano em minha casa a dizer que a mãe dele era uma puta, mas depois de jantarmos conseguimos acalmá-lo e parecia que o casamento ia sobreviver. Até o fomos levar a casa, ridículo, porque é só atravessar a rua dos prédios para a rua das barracas, mas ela ainda não estava, óbvio.

Ficámos todos no café à porta deles a beber minis e o cheiro da figueira trazia o doce do verão com ela. Juntaram-se mais vizinhos, eu até saquei da viola e vieram as pequenas também. Nessa galhofa, a tensão até diminuiu. E quando ela apareceu, com cara de caso, mas muito linda no seu vestido às flores, eles foram falar e nós ficámos descansados porque ao contrário de alguns vizinhos, o Jay Run nunca tinha levantado a mão à mulher.

Só que isso tinha sido na semana passada. Agora fodeu. Ainda há bocado tínhamos ido chillar e o problema voltou à grande. Ou melhor, apareceu assim de repente. Deviam ter visto a desilusão do puto quando estávamos a fumar uma no depósito de água para relaxar dos stresses e chega a mãe dele a falar ao telefone com o outro. Eram cochichos, mas nós estávamos por cima das traseiras, sentados na pala. Deu para ouvi-la a fazer pronúncia brasileira e a confirmar as suspeitas do Jay Run que o amante era zuca. Filmaço.

Eu disse ao puto para irmos fumar noutro lado qualquer, mas ele desceu e foi mesmo apontar o dedo à mãe, depois começou a gritar com ela e quando lhe pus a mão no ombro o gajo já o devia estar a enfiar no nariz dela, pelo menos.

“Bora primo, o que é isso, não tarda estas à bater à tua cota.” - disse eu, enquanto o puxava, mas a ela pisquei-lhe o olho, safada como era e ainda por cima vizinha. Tresandava a gel de banho barato, mas era cheirosa mesmo quando tinha fama de porca.

Quando voltámos à zona estava o pai dele a jogar matrecos com os outros cotas, todos de mini e cigarro na mão. Fiquei triste, o Jay Run sempre tinha sido atleta, salvo erro até tinha ido correr uma maratona no México em que trouxe medalha, mas a carreira na corrida estava decidida a acabar. Segundo ele, primeiro vieram os “quénias”, a forma racista como ele tratava os corredores blacks, depois veio aquele par de cornos bem pesado que tinha impedido a marcha.

Agora quando corria lembrava-se dela e queria era correr para longe, o mais longe possível daquela vergonha que tinha passado. Não havia quem não baixasse o olhar quando lhe dava as boas noites, o azul dos olhos dele estava cinzento, como o Sado através da neblina.

É claro que nós tínhamos pena, mas também era com cada avacalho. Parecia que aqueles atentados à moral davam vontade de esgravatar mais fundo. O Ganza, irmão do Igor, cabeceou a bola no bairro depois de um ganda cruzamento meu, houve logo alguém um a dizer que “se tivesse sido a tua mãe, já tinha era furado a bola.” Ele ainda foi na direcção do gajo de punhos fechados, mas quando ficou na dúvida de qual tinha sido, os rapazes disseram logo “ai não fui eu”, que ele é que já devia estar a ouvir cenas “na paranóia do fumo”.

O Igor veio acordar-me às sete da manhã um ou dias depois a pedir boleia, eu já tinha cagado de alto na faculdade nessa fase, aquele ano era para a depressão e para poupar umas guitas a vender barras. Disse-me que se arrancássemos logo-logo fazia a dele e eu fingi que não estava a ver televendas na televisão com uma já acesa, a pensar em como é que tinha estragado tudo.

O puto acordou para mijar às seis e meia e ouviu qualquer merda a bater, foi à janela e estava a irmã mais velha dele a entrar numa carrinha Renault Megane. Ele jura que a irmã o viu, mas não disse nada, nem quando ele assobiou, gritou e chamou-as de putas. Agora queria que fosse com ele às Praias do Sado, tinha a certeza que o carro era do dono do restaurante onde tinham ido nos anos dele, por isso é que a mãe insistiu tanto. Nem o tinha visto, mas sabia. Pior, por isso é que tinha tido a primeira festa de anos com jantar fora. O chavalo tinha feito vinte e dois anos, notou a discrepância.

“Então, mas como é que tu sabes?” - perguntei eu, quase tão mole como os cereais no leite.

“Primo, quantos cotas com carrinhas megane do tuning é que tu conheces?” - respondeu ele, com uma expressão de desafio. Como não conhecia nenhum, peguei na chave do meu Fiat Uno e bazei.

Eu não percebia o que é que ele podia ir fazer quando lá chegasse, enfrentar o cota? Perguntar-lhe se foi ele que tinha feito o pai dele cabrão? E depois? Ia defender a honra do pai, bater num cota de cinquenta anos que aproveitou a chance que teve com uma jeitosa? Quando uma relação nasce de um par de cornos têm sempre os dois a culpa, pensei eu, mas não lhe disse nada.

Calado, comecei a pensar no caso. Um gajo ama forte, aceita uma mulher que já tem uma filha, mas que nem sabe quem é o pai, um dia ela conhece um empresário da restauração de origens cariocas e fica sem nada. Porra, as gajas do bairro são fodidas, mas este ambiente é pior que o Survivor. Se ainda estudar muito, se tiver força para largar os fumos, talvez ainda arranje uma boa miúda que não seja di zona e que me ajude a não cagar nos filhos como o meu pai me fez.

Estava a fritar com isto quando o Igor me mostrou a faca, disse algo como “é esta que lhe vou espetar na barriga quando lá chegarmos.” Eu encostei logo o meu fiat e perguntei-lhe com sinceridade: “E isso vai mudar o quê?”

Ele começou a argumentar que pelo menos a honra do pai tinha alguém que fizesse por ela, a dizer que toda a gente ia saber que ele não era um fraco de merda como o seu próprio cota, e ainda ia dizer mais qualquer cena, mas já era só baba e ranho, encostou-se ao meu ombro e ficou mais de dez minutos a soluçar. Eu já estava a sentir o pântano, mas por mais desconfortável que isso fosse, era o cheiro do gel de banho da mãe dele a vir da sua pele que mais me incomodava. Onde é que eu tinha falhado para ainda estar neste bairro de merda?

Quando o gajo me largou e voltou à pendura, pedi-lhe a faca sem grande jeito, quando ele me disse que não, pedi-lhe para sair do carro. Ficou todo aceso comigo, mas expliquei-lhe que não podia ser cúmplice de uma facada, muito menos ser o motorista do assassino. Ele engoliu em seco quando se imaginou a matar alguém e eu sugeri que voltássemos para trás, apesar de ter pena de não ir ver a irmã dele, tinha sido a minha primeira namorada de sempre.

Ele ficou calado mais um bocado, desta vez dava para vê-lo a pensar e eu voltei a acender o tortulho, para ele saber que estava na boa. Pediu-me para irmos só ver, precisava de ter a certeza, precisava de ver com os olhos dele. Acho que nesse momento ainda estavam mais enevoados que os do pai.

Segundo ele, a mãe tinha sangue de puta e não havia nada a fazer. Tinha visto o avô a encornar a avó e decidiu logo de pequena que não ia ser ela a parva. Parabéns, pá, até curto. Só que quando começou a rachar é que foi um andamento. Não só gostava de saltar, como muitos dos coirões ainda lhe davam prendas por baixar a cueca. Era impossível não ficar triste com o quanto as pessoas do bairro eram limitadas, mas era ainda mais triste saber que depois de se começar a vender, o próprio pai lhe atirou com uma panela de pressão ao peito e a pôs fora de casa. Quando tinha os vestidos curtos que tanto gostava, às vezes dava para ver a cicatriz e, como quase tudo nela, dava vontade de ver mais.

E agora as irmãs dele iam pelo mesmo caminho. Não demorou muito até me relembrar que quando a irmã dele levou a minha virgindade, já ela não era virgem.

“Quantos anos é que tu tinhas Alex?” - perguntou-me ele.

“Tinha treze.” - respondi eu, sem ter de mentir na idade.

“E ela é da mesma idade que tu e já tinha fodido o Bacon, o Dani…” - e ele continuou a listar mais uns quantos, mas eu desliguei, como fazia sempre que pensava que o bairro me tinha impedido de ter uma daquelas primeiras fodas tão angelicais quanto trapalhonas, em que ninguém do casal sabia nada.

“É por isso que o cota está tão preocupado com a Susy, mano… Ela tem os treze agora e tu já viste como ela é…” - disse ele, obviamente a falar de uma vez em que estávamos dez ou doze manos a jogar à bola no depósito e ela nos ia tentando mexer na picha sempre que parávamos para fumar ganza - “Daquela vez estavas lá tu para lhes meter juízo, mas da próxima vez não faço ideia… Até parece que o Janado não tinha aproveitado, mesmo quando ela ainda nem tem mamas.”

A esperança deles era que a mãe lhes metesse algum juízo na cabeça, que lhes dissesse para não fazerem como ela que aos vinte e um se teve de juntar com um pintor da câmara que lhe dava vontade de gregar mesmo quando tinha olhos lindos. Era um homem feio o Jay Run, mas porra, tinha feito um esforço para dar aqueles putos educação e companhia em actividades desportivas.

Quando chegámos lá às Praias do Sado foi como se o nevoeiro saltasse da vista para a nossa envolvente, quase que tinha de abanar a mão à frente da cara para ver alguma coisa. E ainda por cima cheirava mal da fábrica de papel, parecia que a névoa trazia o cheiro todo ou se calhar era de estarmos bem mais perto do que nas alturas do bairro.

E mesmo com dificuldades de visão, não demorámos muito tempo a encontrar o spot. Um daqueles restaurantes portugueses típicos, em que a esplanada é um quintal com chão de azulejo e a decoração eram estátuas de pedra e arranjos de flores, escondidos sob lonas transparentes que eram içadas conforme o frio ou o calor que estava. O cota viu o meu fiat tipo de faróis ligados e veio espreitar, quando saímos do carro recuou tão rápido que até caiu para trás. Nós rimos e apesar do Igor ainda ter dado um ameaço como se lá fosse mesmo, ele correu para dentro do restaurante e trancou logo as portas. Mesmo se quisesse, nem dava para ter dado a facada.

Quando estávamos a voltar para o bairro, eu acho que a cena precisava de música. Pus um ganda som a tocar, mas em retrospectiva era capaz de parecer irónico — There She Goes dos The La’s. Ele começou a estrebuchar com o registo, mesmo sem perceber inglês, e arranjou uma alternativa mais adequada à nossa zona multicultural, sem sair do tópico da despedida. Amor de hoje do Juvencio Luyiz a tocar através do cabo Aux. Talvez embalado pelo tom confessional da malha, soltou o desabafo dele:

“Mano, se um dia arranjar uma dama espero que não seja puta.”

Ri-me bué e depois rimos os dois e depois acendemos outra já a ouvir malhas mais mexidas. Oito da manhã e já tínhamos a prova que precisávamos de que a mãe do meu puto tinha trocado o pai dele por um zuca que tinha um restaurante e um Renault Megane, oxalá não se fartasse dele tão rápido como do Jay Run.

O chavalo ainda tinha de explicar ao pai o desfecho da cena e o mais provável era ter de o puxar para longe do café para o fazer. Deixei-o lá e fiquei com uma daquelas mocas de ansiedade, a pensar que tinha de me pisgar daqui o mais rápido possível, o bairro ia ser sempre filmes destes. Mesmo sem sentir o curso, se calhar mais valia voltar à escola.

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Alexandre Couto Alexandre Couto

Em Tóquio, à sombra da laranjeira.

Estou no Japão. As luzes rebentam-me na cara com a moca com que estou. Só podem querer cegar-me. Vou de olhos semicerrados, com as mãos a protegerem-me a vista, quando me apercebo que esta figura pode denunciar que sou um contrabandista de cannabis num país onde os estrangeiros já são mal-tratados à partida. Abano a lombar o melhor possível para enxotar a letargia e sigo pela escuridão, em direcção ao arcade-abismo, como se o obscuro e o negrume sempre me parecessem um destino natural.

Algo de estranho se passa neste arcade, todos os jogos à disposição são velhos favoritos meus. Para além das máquinas, há grupos de jovens japoneses, ora a jogarem-nas, ora sentados em cima de delas, assim como outros que fumam e tecem comentários mesquinhos sobre mim quando passo. Não percebo quais são delinquentes e quais querem apenas parecê-lo (há uma idade em que se confundem). Quando me aproximo do Time Crisis (quase todas as crises são exageradas pelo tempo), vejo o Bobo do meu romance, mas devia ser o fantasma de um engano — zarpou quando me aproximei e não lhe pude perguntar o que tenho debaixo da língua já há quase há dois anos (não é que não saiba a resposta).

Meto a moeda e começo logo a dançar. Primeiro sem audiência nenhuma, mas conforme dou os meus toques di zona, o pessoal começa a cercar-me. Nunca soube dançar baile, mas na minha adolescência ou tarrachavas ou eras virgem. Ainda por cima o som era Hollaback Gurl da Gwen Stefani (nunca pensei que não a tivessem cancelado por aqui). O calor de tanta gente a gritar à minha volta substitui o frio espectral do que ainda agora me parecia um assombramento. Tenho de tirar o meu perfecto preto, mas assim que o faço, não tenho a camisa branca e bem engomada por baixo, nem gravata preta — sou só um gajo tatuado a dançar em Tóquio. E bem suado.

A apoteose de guinchos exóticos e de palmadas marteladas nas minhas costas (elas e eles) chega ao seu êxtase quando bato o recorde daquela máquina. Queria guardar o meu recorde como V.F.C., mas os caracteres eram os deles. A juventude pede-me para tirar fotos comigo e eu digo que isso é que não. Roubo o cigarro de uma querida que só podia ser a Faye Valentine e acendo o cigarro na ponta do que a amiga dela fuma, inclinando-me como se a fosse beijar. A tensão sexual desta cena relembra-me que tenho uma esposa e decido contactá-la.

Só que casaco nem vê-lo, pelos vistos alguns dos delinquentes eram sinceros. Vou à corrida ao lobby, mas o Japonês de meia idade que escrevia o seu haiku (vi pelo reflexo no espelho atrás dele), não estava para se chatear. A dada altura reconheceu a palavra iPhone no meio da minha lamúria e passou-me o dele, que tinha no bolso da camisa aos quadrados. O número que lhe ligava estava identificado no ecrã: Maria Rita.

Atendo a chamada, digo que fui assaltado num salão de jogos, mas como me conhece bem (e às minhas mocas), pergunta-me se não o tenho no bolso. Não tenho, mas tenho bolso. O casaco estava pendurado nas minhas costas, mas ainda me faltava resolver a camisa. A única solução é jogar com uma daquelas garras num contentor dedicado a merchandise do Pokémon. Zarpo com três peluches (Bulbasaur, Zubat e uma Eevee super fofa), uma pokébola que serve de caminha para gatos domésticos, um par de brincos em formato de Pokédex e uma t-shirt amarela com o olhar doce do Pikachu debaixo do casaco de cabedal.

A Faye Valentine vem atrás de mim e sussurra-me ao ouvido (num inglês com sotaque tuga): “E se escrevesses um livro chamado Twitter, com pensamentos breves e as tuas crónicas, mais ou menos ficcionais, para demonstrares às pessoas a importância do acto radical que é a publicação editorial? Espanto-me com a ideia e quero lhe agradecer, mas a música nos altifalantes passou para a Cool da Gwen Stefani e ela nunca existiu. Eu acho a ideia boa, mas quando a tento apontar, só me sai a seguinte frase: “tenho tantas saudades dos meus avós.”

Desejo ser capaz de usar o GPS, desejo que um pássaro azul me leve nas suas costas, desejo que o Ferrero Rocher e o Kinder Bueno se tornem um único snack. Entro num 7-11 para comprar um mapa que me leve até à minha querida (temos mesa marcada para as oito), mas fico intrigado com as variedades regionais. Apesar de não haver a combinação com que sonhava, há um Kit Kat de cafuné que me sabe a pato.

Apercebo-me que é impossível alguém entender estes caracteres e começo a andar no sentido da árvore milenária que procurava (o sentido de orientação de quem cresceu sem telemóvel inteligente), em busca da loirinha com as bochechas mais adoráveis do planeta. Nem dez minutos depois, encontro-a à saída do metro. Tinha planeado perder-me no Japão, mas também tinha planeado encontrar-me. Pelos vistos, onde quer que estejas, estou no sítio certo.

Chegamos ao restaurante e ainda é mais fascinante ao vivo do que nas fotos. É esculpido nessa árvore enorme — não é bem um arranha-céus, mas é uma torre orgânica bem valente. Alguém tocava piano clássico e o cheiro a laranja que se soltava para nos proteger da chuva era um complemento à melodia. Faz sentido para quem gosta de sinestesia, estudos inter-artes ou de comer e beber bem. Os meus olhos filmavam os pratos de autor de minimalismo nipónico, mas, por azar, estava num daqueles dias em que só me apetecia bitoque. Pelo sim, pelo não, acendo outro sabre de luz.

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