Grande parte de mandar cogumelos é sentir-me um cogumelo

Para minha primeira crónica de 2025, um assunto importante do meu 2024 — antes do meu casamento colapsar, ainda a surfar aquela tranquilidade do avanço inevitável do tempo, fui durante alguns anos alguém estável e de bem com a vida. Fruto dessa tranquilidade, decidi experimentar pela primeira vez cogumelos mágicos. 

Fez agora um ano quando fui passar a passagem de ano a Tabernas com um casal amigo — fãs de westerns, ela certamente mais do que eu. Achei que este ambiente altamente imersivo, com a preservação dos décors onde foram gravados alguns dos mais famosos filmes de cowboyada, podia ser o local certo para uma experiência com substâncias alucinógenas. 

Antes de ir, tive uma conversa com o meu dealer acerca de doses e, fruto da minha altura, recomendou-me que tomasse duas gramas de cogumelos para uma experiência tolerável, mas que decerto pudesse ser sentida. Agradeci — um dealer de confiança foi algo que procurei durante anos, mas só encontrava indivíduos mais atrasados com as horas do que eu próprio sob o efeito de uma porção generosa de fumo (não é por acaso que não fumo no trabalho).

Romaria adiante, crash total em várias frentes. Caí na patetice de avisar a minha mãe de que ia mandar cogumelos e ela fritou muito de nervoso de que nunca fosse voltar. Provavelmente, voltava. Só não voltava o filho dela, mas sim um menino todo queimado que não ia conseguir pagar as contas com recurso ao seu próprio trabalho (e logo em Lisboa, onde as contas são cordilheiras). Para além da minha mãe, também a minha amiga entrou numa espécie de ansiedade acerca da substância (e logo uma tão natural), o que impediu o meu amigo de conseguir alinhar neste plano comigo (tinha outras duas gramas para ele no estojo dos tabacos porque também é alto). 

Ainda assim, sou um rapaz comprometido com a sua própria programação (quase como se estivesse a adivinhar que a minha estabilidade um dia podia ser posta em cheque, muito antes de saber que isso não me ia impedir de voltar a mandar mais cogumelos no futuro). Acordei no dia 1 de janeiro de 2024 e dirigi-me para a cozinha para tratar da marinada que tinha preparado de véspera para uma carne de porco à portuguesa. Na dúvida, ainda antes do pequeno-almoço, mandei as duas gramas dos cogumelos. Bem à frente da minha amiga ansiosa pelo consumo deste fungo, mas sem lhe contar.

A partir daqui entramos num texto estilo Baudelaire onde vos tento contar o que senti com o mesmo fervor empírico com que o poeta se dedicou à análise dos consumos de haxixe. Em primeiro lugar, durante horas, um grande nada — é muito fácil compreender todos os que duvidam da chegada dos efeitos porque demoraram bastante (como o Fertagus para Setúbal, antes da redobragem de horários). Depois dessas horas, comecei a sentir um leve efeito, como se estivesse pedrado, mas ainda estava deveras operacional, a tratar o almoço da malta (acompanhamentos e tal). Só quando fui fazer xixi e olhei para dentro da sanita e era um ponto de fuga infinito até ao centro do mundo é que me apercebi de que os efeitos visuais já estavam a acontecer em directo no meu corpo. Ri-me, pisquei os olhos e sanita voltou a ser só uma sanita — sem truques de Trainspotting, sem mergulhos sanita dentro. Sem ser o meu xixi, claro, porque mesmo em cogumelos não acerto com pingas no rebordo e considero que isto é parte do meu processo de sofisticação em curso que me vai conseguir uma futura namorada. 

Efeito estúpido — pus a mesa e servi os almoços, mas quando me sentei… Não me apetecia comer. Que disparate depois daquela trabalheira toda de confeção. Convém saberem que eu estava a ocultar da minha amiga que estava em cogumelos para ela não ter ansiedade (um efeito secundário dos cogumelos parecia ser uma empatia enorme, mas já lá vamos). Confessei à minha mulher que não tinha fome e ela perguntou-me se “isso não é dos cogumelos?” Foi como se alguém tivesse ligado o meu apetite com um clique de botão. Do nada, comi tudo. Repeti, e limpei o molho que alagava o prato com uma fatia de pão no fim. 

E depois saí para o parque temático cowboy — devidamente vestido (talvez um cowboy carocho, sejamos sinceros). Às calças de ganga de trabalho, umas Levi’s 501, e às botas de trabalho, umas Timberland de pele, juntava uma camisa aos quadrados e um casaco de ganga. Descobri que Tabernas, mesmo em pleno Inverno, é uma terra amena — o que devia torná-la quentíssima no resto do ano. O parque sucedia-se em diversos edifícios que cumpriam uma função específica (saloon, arsenal, boutique), com muitos deles a oferecerem secções interiores igualmente decoradas para uma oportunidade de foto memorável. Era uma cena fascinante de ver em cogumelos, mas também adorava ter visto sóbrio (o que é uma conclusão importante nesta fase da minha vida). Só depois é que vieram as experiências mais divertidas. 

Sentado para ver um teatrinho western, apercebi-me de que a luz vinha de muito longe para reflectir no espelho que estava à minha frente. Ainda mais impressionante do que isso, parecia que a luz batia no espelhado e voltava para trás, provocando uma breve nesga de impossibilidade — como se a luz tivesse atravessado o cosmos apenas para perceber que tinha falhado a saída da ponte e agora tinha de ir dar a volta a Almada. Só que esta magia terminou rápido quando me apercebi que havia uma zona de animais e comecei a sentir tanta pena deles que esgotei a moca (tal como nos pânicos adolescentes em que a pedra da ganza desaparecia, ou naqueles mergulhos na Arrábida em que a água era tão fria para não nos acordar da dormência canábica). Também não me podia esquecer que tinha tomado os senhores fungos há umas oito horas nesta fase. 

Senti-me um cogumelo — imóvel e sem vontade de andar ao sol. Senti-me um elefante aprisionado num parque temático — porque era difícil não olhar para um animal daquele tamanho e não sentir pena da restrição da sua liberdade. Senti-me também um cowboy de uma era de ouro do faroeste — não tanto pela moca, mas porque era assim que estava vestido. 

Num epílogo inesperado, enquanto apanhava lenha à volta da nossa casa alugada, reparei em como certas sombras se tornavam figurativas e reparei nos mesmos efeitos quando via o fogo na lareira. 

Nessa noite, tive imensos pesadelos com a ingestão de mariscos. Quer dizer, apenas com um dos mariscos que tinha ingerido em Cádiz antes de chegar a Tabernas, chamado galeras de coral. Algures na moca dos cogumelos apercebi-me que era parecido com o pokémon Pheromosa e entrei em depressão de ter comido pokémons ao almoço. Enfim, ninguém me manda achar que estou acima dos veganos no consumo de proteínas, mesmo quando tive a decência de ter parado de comer animais bebés (com excepções apenas para as maiores celebrações católicas, vá, onde cabrito e cordeiro são obrigatórios). 

Na viagem de volta, dei por mim a agradecer a sorte que tinha tido de ter sido uma experiência tão pacífica, bastante satisfeito com a leveza e decerto entusiasmado para convencer os meus amigos a mais programas deste género (lembrei-me de que talvez fosse épico fazê-lo num estádio de futebol ou num concerto de uma banda que gostasse muito). 

Infelizmente, a minha experiência com os cogumelos não ficou por aqui. Quando, já divorciado e meio que a meio de um crush por uma escritora que parecia só gostar de mim pelo meu corpinho e pelos meus lábios, passei um domingo inteiro dedicado à tarefa hercúla de conseguir terminar o meu romance pela segunda vez. A primeira vez tinha sido destruída junto com o meu antigo macbook, num salto do meu gato que derrubou uma meia de leite sobre ele. Não sei de onde veio esta ideia, mas achei que se tomasse cogumelos outra vez, e numa dose maior do que aquela que tinha tomado nas férias em Tabernas, talvez conseguisse fazer avanços na minha nova focalização e no meu novo ponto de vista. 

E foi isso que fiz, o dobro da dose, quatro gramas de cogumelos só para o vosso amigo. O que talvez tenha sido estúpido, porque só parei de escrever e me apercebi que estava enfatuado por vilões e personagens secundários quando parei para comer tipo às seis da tarde e fui fumar um cigarro de pueblo à minha antiga varanda com vista-tejo (e daquelas duas gruas com nomes fixes). 

Foi nesse momento que me apercebi de que as cores do mundo estavam desajustadas no que toca à saturação — os amarelos aqueciam (ainda era verão), os azuis explodiam em nuances encantatórias e os tons de brancos sugavam o sentido do mundo em conjunto com a minha atenção. 

Para além disso, o céu era uma cúpula inteira, que me fazia rir ao compará-lo com aquela esfera que tinha visto na minha viagem a Las Vegas. Como se a minha percepção adulterada da terra me colocasse de forma voluntária dentro de um globo de neve. Ri-me muito, o que deve ter parecido bastante perdido se alguém me tivesse visto, mas voltei para o computador e escrevi até às duas e quarenta e cinco da manhã. Só parei porque tinha o meu olho esquerdo a piscar por vontade própria, o que me parece um alerta orgânico de excesso de tempo de ecrã. 

Agora a ler o livro, é impossível não me lembrar com algum carinho da forma como a minha percepção da vilania ganhou alguma humanidade face à empatia fúngica. E isto num ano em que a leitura do Hothouse me fez temer o morel como uma possível espécie capaz de controlar os humanos por telepatia, algo que acontece em dois terços deste livro. Se for o caso, obrigado aos cogumelos por me quererem melhor escritor — e por aquele doping de leve, num domingo em que adorei passar o dia com eles. 

Olá, obrigado por teres lido esta crónica, este ano vou escrever uma por semana até pingar um gig como cronista.
Se gostas da minha escrita e a quiseres apoiar, compra o meu romance Sinais de Fumo.
O meu nome é Alex Couto e eu amo muito a senhora literatura.

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