Breve crítica ao Battle Royale
Face à folha em branco, estou a estalar os meus dedos como se fossem tiros de shotgun - dois de seguida - para mostrar à tarefa da escrita que estou armado de metacarpos maquiavélicos e que não a temo, de todo. Só que agora é impossível não me lembrar do Battle Royale quando cruzo referências com armas de fogo.
Eu não posso negar, eu gostei muito do Battle Royale. Era o tipo de livro que tinha tudo para que odiasse (demasiado thrillery, crítica política da batata, romantização da violência), mas acabou por não revelar nada disso. O thriller era efectivamente, a crítica política começa a tornar-se tão inevitável face ao jogo que dá a sensação de que o jogo foi uma invenção para criticar a política e a romantização da violência serve sobretudo como um alerta para a forma como continuamos a persegui-la e a torná-la uma busca por beleza nas sociedades contemporâneas.
Caso me esteja a precipitar, vamos dar um passo atrás (algo que nem toda a gente tem hipótese de fazer neste romance, ora porque vai cair de um precipício, ora porque já apanhou uma septicémia, é um romance muito forte para quem gosta de septicémia como elemento narrativo). O Battle Royale é um fenómeno de culto que vendeu um milhão de cópias no Japão em apenas um ano, após ter recebido uma nota de repúdio da versão japonesa da Assembleia da República. Conta a história de uma turma que vai participar no Programa – ou seja, é a turma que vai participar na matança colectiva numa ilha da Republic of Greater East Asia (cuja bandeira parece uma mancha de sangue circular sobre uma toalha branca, hmmm).
É impossível não o enquadrar num certo grito desesperado da população japonesa em repressão à brutalidade do seu país sobre a juventude. Talvez exagere numa correlação com o Death Note, mas encontrei-a numa crítica on-line e fiquei a pensar como uma certa sensação de ser justiceiro passa do protagonista desse trabalho para o narrador deste. Não é por acaso que a personagem do Kazuo Kiryama, um dos mais violentos participantes nesta edição, acabe por ter merecido um clube de fãs tão grande como o Light do Death Note. Esta fúria contra o bullying, assim como a ideia de que o bullying vem do próprio sistema política merece ser sublinhada à partida.
O atributo principal deste livro é que não dá para pousar. Simplesmente não dá, eu precisava de saber se a capa tinha denunciado o desfecho feliz (na medida do possível) entre Shuya e Noriko. Trillherzaço, prosa contida para aumentar a tensão, com boas bicadas ora intelectuais, ora humorísticas. A prosa é cristalina, transparente, quase despersonalizada. Ok, a dada altura começa a fazer piadas, é particularmente feroz com a repressão que se vive no país e também revela alguma curiosidade adolescente a navegar as peripécias de quarenta pessoas de apenas dezassete anos obrigadas a matarem-se para sobreviver.
Uma das características que mais gostei neste livro foi a forma como adivinhou a gamificação do mundo e como o conseguiu enquadrar isso de forma a torná-lo ainda mais viciante. Eu gostei muito do elemento de informação que era colocado no fim de cada cena, em que se anunciava quantos alunos ainda sobreviviam nessa página. Também gostei muito da aleatoriedade nas armas que os alunos levavam para a ilha, mas isso não vou spoilar nesta crítica porque tem muito sentido de humor digno de ser experienciado em primeira mão (mesmo quando é sádico).
Se há glamorização da mutilação dos corpos e da violência desmedida? Não sei, eu teria tido tendência para sobre-escrever (tradução possível de overwrite) muito daquilo, então até vejo como algo contido. É gore? Sim. É gore e depois ainda vai meter o dedo na pocinha de sangue e escrever numa parede branca que é gore? Não, de todo.
Para além do facto de que não dá para pousar, gostei que tivesse muita, muita consciência de classe. Muita noção de que os putos tinham assimetrias sociais entre eles e isso a fazer parte da caracterização mental das personagens, talvez uma das tangentes mais fáceis de meter no trabalho só por homenagem ao real em que vivemos. Quer fosse porque a pobreza os tinha condenado a um desfecho triste, quer fosse por uma certa apatia que vinha do seu bem-estar financeiro, havia no livro uma resposta há forma como a nossa grana e exemplos familiares próximos têm uma repercussão enorme na forma como vivemos as nossas vidas — a rebeldia tanto pode ser um acto de ruptura como a continuação de uma longa tradição familiar.
Acerca do resto do elenco, eu já tinha entrado na obra com muita curiosidade acerca da Mitsuko e não desiludiu. A minha mulher é fã de Mitsuko Souma ao ponto de já ter dado este nome como username em videojogos. Ainda assim, é difícil para mim como pessoa com conta alguma sensibilidade em relação ao male-gaze lidar com as situações que o livro lhe apresenta, sobretudo em relação ao seu passado. Eu acho que foi tratado com bastante elegância, mas tive de reflectir um bocado para chegar a esta conclusão. Se tiverem opiniões acerca disto, digam-me que também gostava de as saber.
Ainda assim, há coisas bem podres nesta obra. Uma delas é o facto de Shuya Nakahara ter demasiado candy. Honestamente, eu acho que vou passar a dá-lo como exemplo de excesso de candy nas minhas aulas de storytelling. É que o puto tem tudo, ora tocar rock, ora ser estrela de basebol, groupies e guitarras é sempre bom clichê. O facto de ter várias damas apaixonadas por ele de que nem se apercebe demonstra que o jogo tinha um protagonista forte (mesmo que mau guerreiro, mas sempre a sobreviver por milagre).
Enfim, excesso de candy à parte, o final é uma banhada tão grande que nem vou dar spoiler. Se curtirem de finais felizes vão com tudo porque é mesmo lame, sobretudo depois de tanta crueldade. Aliás, tanto tempo em tensão para acabar com uma cena que nem sequer precisava de estar no livro. Vamos acreditar que é para dar alguma esperança aos adolescentes deste mundo, que bem devem precisar dela.
É natural que um livro tão ciente da cultura gamer e das suas próprias mecânicas internas de gamificação, acabe por também ter um impacto nela. Ainda assim, acho que ninguém esperava a forma como o modo Battle Royale fosse dominar o mundo até ao seu ápex máximo que deve ter sido o fortnite. Na primeira página do Battle Royale, é apresentado como um herdeiro do wrestling e dos combates entre múltiplos lutadores, onde as alianças duravam pouco até à traição. Olhando para o seu impacto na cultural popular e nas réplicas que vêm daqui (Hunger Games e Squid Game, por exemplo), acabam por sublinhar os muitos méritos desta obra.
Se gostava de ter esta critíca literária descontraída, mas sempre informada e repleta de referências, na sua revista ou jornal de prestígio, eu teria muito mais gosto em fazê-lo do que folhetos ou brochuras corporativas. Contacte-me através do e-mail alexcoutoconfidential@gmail.com para solicitações do género.