Dançar até ficar mal-disposto, breve reflexão sobre O Tango de Satanás
“Todos os estranhos do mundo estão no meu comprimento de onda.” – é uma citação do Thomas Pynchon que abre bem uma reflexão crítica sobre a leitura do Tango de Satanás de László Krasznahorkai. Onde se lê estranhos, também se podia ler apreciadores degenerados do pós-modernismo.
Quem me conhece sabe que eu estou sempre a falar sobre pós-modernismo. O exemplo mais degradante veio na edição passada do Primavera Sound em que tentei convencer não só os amigos, mas também as colegas de casa, de que a realização dos concertos da Rosalía e do C. Tangana trazia elementos pós-modernos de subversão de formatos para as artes performativas. Era fácil perceber isso através de códigos cinematográficos (cenas Almodóvar-escas), documentais (correlação entre a performance e as filmagens pessoais) e de forma como aproximação à intimidade (videochamadas em directo, planos inspirados em FaceTime). Não é segredo nenhum para quem me acompanha online que eu tropeço em longos discursos teóricos para desespero de quem está à minha volta.
Tudo isto estava dentro de mim devido à minha dieta mediática de fortes inspirações pós-modernas, mas explodiu com a cadeira da Arte do Romance, onde tive o prazer de ser guiado por um professor que me ajudou muito. Até um rapaz algo lento de compreensão como eu consegue atingir o progresso quando repara nas rupturas do modernismo de forma justaposta com as invenções do pós-modernismo.
Antes de chegar ao Tango de Satanás, é preciso referir as paragens obrigatórias onde ganhei forças para agora conseguir navegar a longa reza ao diabo que são os capítulos mono-paragrafais que este livro nos traz. No White Noise, do Don DeLillo, dei de caras com um diálogo fragmentado, multi-direccional, cheio de significado e de banalidade em simultâneo. No A Visit From The Goon Squad deparei-me com esta ideia de que as personagens podem ser estafetas de uma história, não a levando do início ao fim, mas carregando o testemunho enquanto os holofotes incidem sobre si. Na verdade, agora que penso nisto, esta é capaz de ser uma das características que mais gosto no Vernon Subutex da Virginie Despentes.
No Tango de Satanás, temos tudo isto ao mesmo tempo. Ao visitarmos a antiga comuna perdida algures na Hungria, encontramos a sátira ao regime soviético, mas encontramos também a miséria e muitas invenções a serem feitas com ela no romance. Temos a sátira, com o sentido de humor que tende a exigir, mas também temos o horror, o religioso e o respeito pelo sobrenatural. Só num livro muito crente é que damos por nós a pensar se o Irimias é messias ou vigarista tantas vezes que acabamos a obra sem resposta (mas inclinados para uma delas).
Há dois atributos deste romance que me fazem gostar muito dele. O que faz com a linguagem, mas também o que faz com a forma.
O que faz com a linguagem é bastante perceptível. As longas sequências em cada um dos capítulos parecem elevar a narração e o diálogo a um burburinho impossível de desligar, onde surgem pensamentos fora de sítio e temos a sensação de que o terreno onde a obra se passa está tão amaldiçoada que chega a permear o espaço da obra. Mas não é só isso, há outros detalhes desta linguagem que se tornam contagiantes e dignos da nossa maior atenção.
O que Krasznahorkai faz com a chuva, sempre presente à volta das personagens, é a criação de um espaço mental assente na força do vocábulo, como um pintor que trabalha o vantablack de forma a maximizar a força do seu chiaroscuro. No prefácio do Casanova que estava na edição da Antígona que li, havia refência à quantidade de vezes que a palavra chuva aparecia e era assim algo próximo de uma brutalidade (tipo duzentas vezes na obra, o que certamente marca um espaço intelectual e força a sensação de chuva de forma divina sobre o leitor).
Ainda assim, fiquei muito mais admirado com o seu trabalho com as aranhas, onde em vez de fazer delas uma figura omnipresente, joga com a progressão, deixando-as ora mais próximas, ora a deixarem os personagens à beira de um ataque de nervos em relação à impossibilidade de limpar as suas teias. O endgame desta brincadeira com aranhas é algo de mágico, que chega na viragem da metade do livro e que provoca uma cena sublime, onde a nossa paciência é recompensada pela beleza da escrita e das imagens onde se cristaliza.
O que Krasznahorkai faz com a forma também é digno de um mergulho teórico, mas já foi escrito tanto acerca disto que fica difícil não tropeçar num cliché. O livro está dividido em duas metades e se a primeira metade parece andar para a frente, a segunda metade parece andar para trás. Especialistas em dançar o tango vão reconhecer este andamento, assim como a subversão conceptual da forma. Eu tenho dois pés esquerdos e mesmo assim senti esta dança, aqui exagerada pela sensação de incerteza.
Num detalhe divertido, este livro parece deixar-nos algo pedrados, mesmo quando o lemos sóbrios. A sucessão de frases ganha uma embalagem tal que chega a parecer hipnótico, ou como li na entrevista da Paris Review ao autor, narcótico. É fixe essa sensação, a boa literatura sempre teve o mérito de nos desencaminhar do real. Para acabar, uma citação que demonstra como até para o Krasznahorkai tudo isto tem piada. Até deixar de ter, claro:
“Get it into your thick head that jokes are just like life. Things that begin badly, end badly. Everything's fine in the middle, it's the end you need to worry about.”
Se gostava de ter esta crónica literária descontraída, mas sempre divertida e repleta de referências culturais, na sua revista ou jornal de prestígio, eu teria muito mais gosto em fazê-lo do que folhetos ou brochuras corporativas. Contacte-me através do e-mail alexandre.dscouto@gmail.com para solicitações do género.