Há com cada par de cornos
As cenas estavam a começar a correr um bocado mal na vida do Igor. Na semana passada o cota dele tinha estado todo bezano em minha casa a dizer que a mãe dele era uma puta, mas depois de jantarmos conseguimos acalmá-lo e parecia que o casamento ia sobreviver. Até o fomos levar a casa, ridículo, porque é só atravessar a rua dos prédios para a rua das barracas, mas ela ainda não estava, óbvio.
Ficámos todos no café à porta deles a beber minis e o cheiro da figueira trazia o doce do verão com ela. Juntaram-se mais vizinhos, eu até saquei da viola e vieram as pequenas também. Nessa galhofa, a tensão até diminuiu. E quando ela apareceu, com cara de caso, mas muito linda no seu vestido às flores, eles foram falar e nós ficámos descansados porque ao contrário de alguns vizinhos, o Jay Run nunca tinha levantado a mão à mulher.
Só que isso tinha sido na semana passada. Agora fodeu. Ainda há bocado tínhamos ido chillar e o problema voltou à grande. Ou melhor, apareceu assim de repente. Deviam ter visto a desilusão do puto quando estávamos a fumar uma no depósito de água para relaxar dos stresses e chega a mãe dele a falar ao telefone com o outro. Eram cochichos, mas nós estávamos por cima das traseiras, sentados na pala. Deu para ouvi-la a fazer pronúncia brasileira e a confirmar as suspeitas do Jay Run que o amante era zuca. Filmaço.
Eu disse ao puto para irmos fumar noutro lado qualquer, mas ele desceu e foi mesmo apontar o dedo à mãe, depois começou a gritar com ela e quando lhe pus a mão no ombro o gajo já o devia estar a enfiar no nariz dela, pelo menos.
“Bora primo, o que é isso, não tarda estas à bater à tua cota.” - disse eu, enquanto o puxava, mas a ela pisquei-lhe o olho, safada como era e ainda por cima vizinha. Tresandava a gel de banho barato, mas era cheirosa mesmo quando tinha fama de porca.
Quando voltámos à zona estava o pai dele a jogar matrecos com os outros cotas, todos de mini e cigarro na mão. Fiquei triste, o Jay Run sempre tinha sido atleta, salvo erro até tinha ido correr uma maratona no México em que trouxe medalha, mas a carreira na corrida estava decidida a acabar. Segundo ele, primeiro vieram os “quénias”, a forma racista como ele tratava os corredores blacks, depois veio aquele par de cornos bem pesado que tinha impedido a marcha.
Agora quando corria lembrava-se dela e queria era correr para longe, o mais longe possível daquela vergonha que tinha passado. Não havia quem não baixasse o olhar quando lhe dava as boas noites, o azul dos olhos dele estava cinzento, como o Sado através da neblina.
É claro que nós tínhamos pena, mas também era com cada avacalho. Parecia que aqueles atentados à moral davam vontade de esgravatar mais fundo. O Ganza, irmão do Igor, cabeceou a bola no bairro depois de um ganda cruzamento meu, houve logo alguém um a dizer que “se tivesse sido a tua mãe, já tinha era furado a bola.” Ele ainda foi na direcção do gajo de punhos fechados, mas quando ficou na dúvida de qual tinha sido, os rapazes disseram logo “ai não fui eu”, que ele é que já devia estar a ouvir cenas “na paranóia do fumo”.
O Igor veio acordar-me às sete da manhã um ou dias depois a pedir boleia, eu já tinha cagado de alto na faculdade nessa fase, aquele ano era para a depressão e para poupar umas guitas a vender barras. Disse-me que se arrancássemos logo-logo fazia a dele e eu fingi que não estava a ver televendas na televisão com uma já acesa, a pensar em como é que tinha estragado tudo.
O puto acordou para mijar às seis e meia e ouviu qualquer merda a bater, foi à janela e estava a irmã mais velha dele a entrar numa carrinha Renault Megane. Ele jura que a irmã o viu, mas não disse nada, nem quando ele assobiou, gritou e chamou-as de putas. Agora queria que fosse com ele às Praias do Sado, tinha a certeza que o carro era do dono do restaurante onde tinham ido nos anos dele, por isso é que a mãe insistiu tanto. Nem o tinha visto, mas sabia. Pior, por isso é que tinha tido a primeira festa de anos com jantar fora. O chavalo tinha feito vinte e dois anos, notou a discrepância.
“Então, mas como é que tu sabes?” - perguntei eu, quase tão mole como os cereais no leite.
“Primo, quantos cotas com carrinhas megane do tuning é que tu conheces?” - respondeu ele, com uma expressão de desafio. Como não conhecia nenhum, peguei na chave do meu Fiat Uno e bazei.
Eu não percebia o que é que ele podia ir fazer quando lá chegasse, enfrentar o cota? Perguntar-lhe se foi ele que tinha feito o pai dele cabrão? E depois? Ia defender a honra do pai, bater num cota de cinquenta anos que aproveitou a chance que teve com uma jeitosa? Quando uma relação nasce de um par de cornos têm sempre os dois a culpa, pensei eu, mas não lhe disse nada.
Calado, comecei a pensar no caso. Um gajo ama forte, aceita uma mulher que já tem uma filha, mas que nem sabe quem é o pai, um dia ela conhece um empresário da restauração de origens cariocas e fica sem nada. Porra, as gajas do bairro são fodidas, mas este ambiente é pior que o Survivor. Se ainda estudar muito, se tiver força para largar os fumos, talvez ainda arranje uma boa miúda que não seja di zona e que me ajude a não cagar nos filhos como o meu pai me fez.
Estava a fritar com isto quando o Igor me mostrou a faca, disse algo como “é esta que lhe vou espetar na barriga quando lá chegarmos.” Eu encostei logo o meu fiat e perguntei-lhe com sinceridade: “E isso vai mudar o quê?”
Ele começou a argumentar que pelo menos a honra do pai tinha alguém que fizesse por ela, a dizer que toda a gente ia saber que ele não era um fraco de merda como o seu próprio cota, e ainda ia dizer mais qualquer cena, mas já era só baba e ranho, encostou-se ao meu ombro e ficou mais de dez minutos a soluçar. Eu já estava a sentir o pântano, mas por mais desconfortável que isso fosse, era o cheiro do gel de banho da mãe dele a vir da sua pele que mais me incomodava. Onde é que eu tinha falhado para ainda estar neste bairro de merda?
Quando o gajo me largou e voltou à pendura, pedi-lhe a faca sem grande jeito, quando ele me disse que não, pedi-lhe para sair do carro. Ficou todo aceso comigo, mas expliquei-lhe que não podia ser cúmplice de uma facada, muito menos ser o motorista do assassino. Ele engoliu em seco quando se imaginou a matar alguém e eu sugeri que voltássemos para trás, apesar de ter pena de não ir ver a irmã dele, tinha sido a minha primeira namorada de sempre.
Ele ficou calado mais um bocado, desta vez dava para vê-lo a pensar e eu voltei a acender o tortulho, para ele saber que estava na boa. Pediu-me para irmos só ver, precisava de ter a certeza, precisava de ver com os olhos dele. Acho que nesse momento ainda estavam mais enevoados que os do pai.
Segundo ele, a mãe tinha sangue de puta e não havia nada a fazer. Tinha visto o avô a encornar a avó e decidiu logo de pequena que não ia ser ela a parva. Parabéns, pá, até curto. Só que quando começou a rachar é que foi um andamento. Não só gostava de saltar, como muitos dos coirões ainda lhe davam prendas por baixar a cueca. Era impossível não ficar triste com o quanto as pessoas do bairro eram limitadas, mas era ainda mais triste saber que depois de se começar a vender, o próprio pai lhe atirou com uma panela de pressão ao peito e a pôs fora de casa. Quando tinha os vestidos curtos que tanto gostava, às vezes dava para ver a cicatriz e, como quase tudo nela, dava vontade de ver mais.
E agora as irmãs dele iam pelo mesmo caminho. Não demorou muito até me relembrar que quando a irmã dele levou a minha virgindade, já ela não era virgem.
“Quantos anos é que tu tinhas Alex?” - perguntou-me ele.
“Tinha treze.” - respondi eu, sem ter de mentir na idade.
“E ela é da mesma idade que tu e já tinha fodido o Bacon, o Dani…” - e ele continuou a listar mais uns quantos, mas eu desliguei, como fazia sempre que pensava que o bairro me tinha impedido de ter uma daquelas primeiras fodas tão angelicais quanto trapalhonas, em que ninguém do casal sabia nada.
“É por isso que o cota está tão preocupado com a Susy, mano… Ela tem os treze agora e tu já viste como ela é…” - disse ele, obviamente a falar de uma vez em que estávamos dez ou doze manos a jogar à bola no depósito e ela nos ia tentando mexer na picha sempre que parávamos para fumar ganza - “Daquela vez estavas lá tu para lhes meter juízo, mas da próxima vez não faço ideia… Até parece que o Janado não tinha aproveitado, mesmo quando ela ainda nem tem mamas.”
A esperança deles era que a mãe lhes metesse algum juízo na cabeça, que lhes dissesse para não fazerem como ela que aos vinte e um se teve de juntar com um pintor da câmara que lhe dava vontade de gregar mesmo quando tinha olhos lindos. Era um homem feio o Jay Run, mas porra, tinha feito um esforço para dar aqueles putos educação e companhia em actividades desportivas.
Quando chegámos lá às Praias do Sado foi como se o nevoeiro saltasse da vista para a nossa envolvente, quase que tinha de abanar a mão à frente da cara para ver alguma coisa. E ainda por cima cheirava mal da fábrica de papel, parecia que a névoa trazia o cheiro todo ou se calhar era de estarmos bem mais perto do que nas alturas do bairro.
E mesmo com dificuldades de visão, não demorámos muito tempo a encontrar o spot. Um daqueles restaurantes portugueses típicos, em que a esplanada é um quintal com chão de azulejo e a decoração eram estátuas de pedra e arranjos de flores, escondidos sob lonas transparentes que eram içadas conforme o frio ou o calor que estava. O cota viu o meu fiat tipo de faróis ligados e veio espreitar, quando saímos do carro recuou tão rápido que até caiu para trás. Nós rimos e apesar do Igor ainda ter dado um ameaço como se lá fosse mesmo, ele correu para dentro do restaurante e trancou logo as portas. Mesmo se quisesse, nem dava para ter dado a facada.
Quando estávamos a voltar para o bairro, eu acho que a cena precisava de música. Pus um ganda som a tocar, mas em retrospectiva era capaz de parecer irónico — There She Goes dos The La’s. Ele começou a estrebuchar com o registo, mesmo sem perceber inglês, e arranjou uma alternativa mais adequada à nossa zona multicultural, sem sair do tópico da despedida. Amor de hoje do Juvencio Luyiz a tocar através do cabo Aux. Talvez embalado pelo tom confessional da malha, soltou o desabafo dele:
“Mano, se um dia arranjar uma dama espero que não seja puta.”
Ri-me bué e depois rimos os dois e depois acendemos outra já a ouvir malhas mais mexidas. Oito da manhã e já tínhamos a prova que precisávamos de que a mãe do meu puto tinha trocado o pai dele por um zuca que tinha um restaurante e um Renault Megane, oxalá não se fartasse dele tão rápido como do Jay Run.
O chavalo ainda tinha de explicar ao pai o desfecho da cena e o mais provável era ter de o puxar para longe do café para o fazer. Deixei-o lá e fiquei com uma daquelas mocas de ansiedade, a pensar que tinha de me pisgar daqui o mais rápido possível, o bairro ia ser sempre filmes destes. Mesmo sem sentir o curso, se calhar mais valia voltar à escola.