Em Tóquio, à sombra da laranjeira.
Estou no Japão. As luzes rebentam-me na cara com a moca com que estou. Só podem querer cegar-me. Vou de olhos semicerrados, com as mãos a protegerem-me a vista, quando me apercebo que esta figura pode denunciar que sou um contrabandista de cannabis num país onde os estrangeiros já são mal-tratados à partida. Abano a lombar o melhor possível para enxotar a letargia e sigo pela escuridão, em direcção ao arcade-abismo, como se o obscuro e o negrume sempre me parecessem um destino natural.
Algo de estranho se passa neste arcade, todos os jogos à disposição são velhos favoritos meus. Para além das máquinas, há grupos de jovens japoneses, ora a jogarem-nas, ora sentados em cima de delas, assim como outros que fumam e tecem comentários mesquinhos sobre mim quando passo. Não percebo quais são delinquentes e quais querem apenas parecê-lo (há uma idade em que se confundem). Quando me aproximo do Time Crisis (quase todas as crises são exageradas pelo tempo), vejo o Bobo do meu romance, mas devia ser o fantasma de um engano — zarpou quando me aproximei e não lhe pude perguntar o que tenho debaixo da língua já há quase há dois anos (não é que não saiba a resposta).
Meto a moeda e começo logo a dançar. Primeiro sem audiência nenhuma, mas conforme dou os meus toques di zona, o pessoal começa a cercar-me. Nunca soube dançar baile, mas na minha adolescência ou tarrachavas ou eras virgem. Ainda por cima o som era Hollaback Gurl da Gwen Stefani (nunca pensei que não a tivessem cancelado por aqui). O calor de tanta gente a gritar à minha volta substitui o frio espectral do que ainda agora me parecia um assombramento. Tenho de tirar o meu perfecto preto, mas assim que o faço, não tenho a camisa branca e bem engomada por baixo, nem gravata preta — sou só um gajo tatuado a dançar em Tóquio. E bem suado.
A apoteose de guinchos exóticos e de palmadas marteladas nas minhas costas (elas e eles) chega ao seu êxtase quando bato o recorde daquela máquina. Queria guardar o meu recorde como V.F.C., mas os caracteres eram os deles. A juventude pede-me para tirar fotos comigo e eu digo que isso é que não. Roubo o cigarro de uma querida que só podia ser a Faye Valentine e acendo o cigarro na ponta do que a amiga dela fuma, inclinando-me como se a fosse beijar. A tensão sexual desta cena relembra-me que tenho uma esposa e decido contactá-la.
Só que casaco nem vê-lo, pelos vistos alguns dos delinquentes eram sinceros. Vou à corrida ao lobby, mas o Japonês de meia idade que escrevia o seu haiku (vi pelo reflexo no espelho atrás dele), não estava para se chatear. A dada altura reconheceu a palavra iPhone no meio da minha lamúria e passou-me o dele, que tinha no bolso da camisa aos quadrados. O número que lhe ligava estava identificado no ecrã: Maria Rita.
Atendo a chamada, digo que fui assaltado num salão de jogos, mas como me conhece bem (e às minhas mocas), pergunta-me se não o tenho no bolso. Não tenho, mas tenho bolso. O casaco estava pendurado nas minhas costas, mas ainda me faltava resolver a camisa. A única solução é jogar com uma daquelas garras num contentor dedicado a merchandise do Pokémon. Zarpo com três peluches (Bulbasaur, Zubat e uma Eevee super fofa), uma pokébola que serve de caminha para gatos domésticos, um par de brincos em formato de Pokédex e uma t-shirt amarela com o olhar doce do Pikachu debaixo do casaco de cabedal.
A Faye Valentine vem atrás de mim e sussurra-me ao ouvido (num inglês com sotaque tuga): “E se escrevesses um livro chamado Twitter, com pensamentos breves e as tuas crónicas, mais ou menos ficcionais, para demonstrares às pessoas a importância do acto radical que é a publicação editorial? Espanto-me com a ideia e quero lhe agradecer, mas a música nos altifalantes passou para a Cool da Gwen Stefani e ela nunca existiu. Eu acho a ideia boa, mas quando a tento apontar, só me sai a seguinte frase: “tenho tantas saudades dos meus avós.”
Desejo ser capaz de usar o GPS, desejo que um pássaro azul me leve nas suas costas, desejo que o Ferrero Rocher e o Kinder Bueno se tornem um único snack. Entro num 7-11 para comprar um mapa que me leve até à minha querida (temos mesa marcada para as oito), mas fico intrigado com as variedades regionais. Apesar de não haver a combinação com que sonhava, há um Kit Kat de cafuné que me sabe a pato.
Apercebo-me que é impossível alguém entender estes caracteres e começo a andar no sentido da árvore milenária que procurava (o sentido de orientação de quem cresceu sem telemóvel inteligente), em busca da loirinha com as bochechas mais adoráveis do planeta. Nem dez minutos depois, encontro-a à saída do metro. Tinha planeado perder-me no Japão, mas também tinha planeado encontrar-me. Pelos vistos, onde quer que estejas, estou no sítio certo.
Chegamos ao restaurante e ainda é mais fascinante ao vivo do que nas fotos. É esculpido nessa árvore enorme — não é bem um arranha-céus, mas é uma torre orgânica bem valente. Alguém tocava piano clássico e o cheiro a laranja que se soltava para nos proteger da chuva era um complemento à melodia. Faz sentido para quem gosta de sinestesia, estudos inter-artes ou de comer e beber bem. Os meus olhos filmavam os pratos de autor de minimalismo nipónico, mas, por azar, estava num daqueles dias em que só me apetecia bitoque. Pelo sim, pelo não, acendo outro sabre de luz.