Um momento sensível para a leitura de Dune

Desde que comecei a leitura de Dune, a obra-prima de Frank Herbert, o mundo real, onde continuo a viver nos intervalos da ficção científica, mudou.

 

O ataque terrorista do Hamas (que condeno) deu lugar a um conjunto de bombardeamentos sobre a faixa de Gaza (que também condeno). Nestes dias conturbados tem de ser assim, usamos as nossas condenações como um crachá de humanismo e de decência. Face a este conflito e aos efeitos que teve nas pessoas — tantos das que sofrem com ele, como aquelas à minha volta que se posicionam perante ele — a minha relação com uma história onde o protagonista tanto teme a Jihad, como sabe que está prestes a chegar, deixou de se passar a milhões de quilómetros cósmicos e tornou-se mais próxima, no território autocolante da metáfora.

 

Mais do que a prosa, que me surpreendeu pela positiva face a tanto burburinho on-line acerca da sua incompetência técnica, foi mesmo este poder de analogia que acabou por impactar, primeiro de forma sub-reptícia e depois de forma avassaladora, a minha leitura.

 

Em Dune, acompanhamos a família Atreides na saída do seu planeta-natal de Caladan em direcção a Arrakis, o planeta-duna, ponto de grande interesse político para toda a galáxia devido à produção de Spice (uma espécie de petróleo para viagens galácticas, mas que também dá altas pedras e olhos azuis). Logo aqui, há algo de Leon Uris no seu calhamaço Êxodus, um banger que assisti à minha mãe reler várias vezes durante a minha adolescência e estamos a falar de um livro que compete com o Dune em termos de puro volume de páginas.

 

Só que assim que chegamos a Arrakis e damos de cara com os Fremen (do olho azul supracitado), percebemos que este povo foi mergulhado numa conspiração religiosa e aguarda o seu Messias para proceder à sua libertação.

 

Por muito que gostasse de focar a minha leitura de Dune na caracterização do Paul Atreides ou da sua mãe, Lady Jessica, é imperativo que o primeiro ponto de análise seja uma extrapolação entre a realidade do conflito entre Israel e Palestina e a trama política que vemos na obra.

 

Também em Dune há interesses externos a comandar a vida das pessoas — líderes que comandam à distância com toda a frieza que o trabalho remoto permite, assim como supostos líderes que se revelam vassalos quando sabem que a sua opinião sincera pode trazer inimizades, que por si só trazem sempre despesas (algo terrível numa era em que o lucro parece comandar a vida).

 

Não é preciso perceber muito de política para sabermos que às vezes basta alguém escolher o caminho do degredo ou da violência, para muitos outros arranjarem formas de o justificar. Numa era de polarização, em que assuntos complexos são muitas vezes reduzidos a um binómio de apenas dois posicionamentos possíveis, toda a nuance será guiada até à violência, ou, pelo menos, até ao conflito.

 

Eu lido bem com a violência na ficção — devido à minha própria biografia, o conflito físico sempre foi tanto uma admiração, como um assombro. Ainda hoje lamento algumas vezes em que não andei à porrada, tal como noutras me arrependo das humilhações em que me envolvi porque não controlei a minha própria raiva. Como jovem autor, esta tendência para a porrada acabou por ter um papel notório no meu primeiro romance, onde falhei várias vezes a sua contenção. O Dune também é muito sobre isto, sobre escolher as guerras certas para comprar, o momento certo para atacar.

 

A abordagem mitológica que o Dune faz da luta, uma eterna profecia por cumprir, está organizada de forma hierárquica consoante os povos. Se os Harkkonens são fortes, os Fremen são mais fortes porque estão desesperados, refugiam-se num combate em guerrilha que pode ser a sua única possibilidade de defesa. A tropa Sardaukar, que o Imperador cultiva num planeta recôndito, é conhecida pela sua violência e pela forma como só aceita a vitória. Durante a leitura, leves comparações entre estas facções e os protagonistas do conflito a que voltamos a assistir no Médio Oriente foram possíveis, mas a grande maioria das vezes parecia ser só sugestão minha, a encontrar semelhanças entre dois assuntos que me consumiam tanto tempo.

 

Tal como na vida real, o Dune não se acanha de colocar a religião como um dos grandes culpados na erosão da proximidade entre os homens — vai mais longe, faz da religião uma espécie de conspiração que actua de forma sombria nos nossos interesses, a comandar as nossas expectativas. Ora através daquele elemento feroz que é a esperança, ora como gatilho final para levar os homens da vida à morte mais digna, aquela que acreditam ser honrada, mesmo quando é combativa. É claro que a caracterização destas crenças tem um estilo próprio, mas não deixamos de reconhecer a nossa realidade nessa forma de revelar a violência como a única saída possível.

 

Frank Herbert não coloca Paul Atreides a comandar uma cruzada, nem uma reconquista. O termo é Jihad — e parece carregar nele uma certa certeza de que há um direito intrínseco à rebelião contra a opressão. Será um proxy para defesa da Palestina? Será que o Frank Herbert está a defender a acção terrorista em vez de soluções políticas?

 

Não me parece. Acho que o conflito nos afasta da racionalidade. Acho que o ódio é uma energia difícil de dissipar. Acho que quando um povo é obrigado a recorrer ao pior de si para sobreviver, a escalada de violência é cada vez mais terrível. Acho que há um aviso acerca do quanto o colonialismo é uma prática terrível, que obriga os povos a lutarem da forma mais degradante para si e para os seus adversários. Acho que o meu desdém pela forma como o Hamas invadiu o território israelita é um sinal de que vivo a minha vida de forma pacífica, mas a incompreensão acerca da situação que deixou uma população às mãos de um grupo terrorista radical também demonstra o privilégio de nunca ter tido de me revoltar contra um opressor.

 

Eu condeno tudo com sinceridade. Não sou um rapaz acanhado quando chega a hora de consumir conteúdos gore e o que vi da invasão do Hamas foi de uma brutalidade que não esperava. Há um tipo de sangue, escuro, quase preto, na verdade, que associo a alguns dos momentos mais traumáticos da minha vida — quando a minha avó teve um AVC precisamente no momento em que limpava as janelas e pintou a casa de esguichos de sangue arterial, assim como a vez em que o meu amigo se meteu numa confusão por causa da bicicleta que lhe roubaram e acabou esfaqueado até ao tendão. Se tivesse de dar uma cor à maldade seria essa, o momento em que o bordeaux deixa de ser Griffyndor e se torna violência entre os homens. Uma cor que encontro no Dune, entre tantas outras tonalidades nobres e naturais, mas que também encontro na vida real, no LiveLeak e nos clipes de vídeo que juro a mim próprio que nunca mais vou ver, até os ver e rever em pesadelos que ditam a minha sensibilidade face à violência.

 

Este que foi o mais fascinante livro de ficção científica que encontrei no meu curto percurso de dez ou doze livros do género, também acabou por ser o que mais se confundiu com a realidade à minha volta, mesmo quando a distância entre a imaginação e a galáxia mais distante é visível e invisível em simultâneo.

 

Pode ter sido uma mera consequência do momento, mas acredito que a minha leitura desta obra vai ficar envolta na brutalidade do conflito no Médio Oriente, assim como a minha percepção deste conflito foi informada pelo laboratório de pessoas e emoções que Frank Herbert desenvolve ao longo do Dune. No meio desta confusão entre realidade e ficção, fica uma certeza: um desejo de paz que, idealmente, não seja servida pela mão da morte.

 

“The Fremen were supreme in that quality the ancients called "spannungsbogen" -- which is the self-imposed delay between desire for a thing and the act of reaching out to grasp that thing.”

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