Tudo o que perdi quando fui roubado em Serralves

Está tudo bem. O assalto foi ao carro, enquanto eu e a Maria Rita, assim como o Diogo e a Carolina (tínhamos passado uma semana fantástica no Gerês juntos), estávamos a ver as esculturas fantásticas do Anish Kapoor.

Acho que estávamos tão entusiasmados com esse chamariz cultural como tínhamos estado acerca da viagem ao recôndito da natureza, o que se calhar justifica a burrice de ter deixado a minha Eastpak cinzenta com o meu MacBook na bagageira do carro.

Sim, essa foi uma das coisas que me roubaram em Serralves. O meu computador, que naquela altura já não era bem um computador, mas sim um fóssil de alumínio. Já o tinha desde 2011 e, pelo contexto, queria que durasse para sempre (mesmo quando me arrependia de lá ter colado autocolantes da Supreme e do Adventure Time).

Tinha sido uma prenda dos meus avós quando recebi a bolsa de estudos e perceberam que não tinham de investir a totalidade dos três mil euros que tinham poupado para que me conseguisse licenciar numa universidade pública. O que é que fizeram? Investiram-nos à mesma, para me relembrarem que enquanto estivessem vivos, eu teria sempre uma vantagem competitiva no mundo (tal como agora tenho essa lembrança, uma vantagem que o tempo não consegue apagar).

Quase tão importante como o contexto do computador, era o momento. Nós estávamos em 2018 quando foi esse assalto, o computador tinha sete anos. Eu já devia ter saído do Shifter há dois anos para acabar o meu romance, mas até esse momento tinha apenas um romance escrito duas vezes e cada uma pior do que outra, numa pescadinha de rabo na boca de pura mediocridade. Fiz back-up do progresso da terceira versão que escrevia, numa de que nunca se sabe o que pode acontecer.

Tem graça que foi durante essa terceira redacção que encontrei o tom, salvo erro até ia mais feliz para as férias porque tinha visto algo de criativo e de único para resolver essa obra (hoje sei que apenas fiz o mesmo que o Carlyle quando escreveu sobre a revolução francesa, utilizar um pronome colectivo para dar uma maior sensação de imersão na realidade da obra).

Dentro desse Macbook estavam não só todos os meus textos até à data, como aquele texto que provocou a maior vergonha da minha vida. Salvo erro chamava-se “Uma lista prática de tudo o que vos torna básicas” e era precisamente isso, um apontar de comportamentos que eu achava básicos, como postar sushi no instagram ou idealizar um Fiat 500 (como se eu não fosse tão ou mais básico). Guardei esse texto, assim como o arquivo do blogue chungaforever no ambiente de trabalho, mas nunca o coloquei num disco externo, nem na cloud. Não deve ser preciso dizer que lhes perdi o rasto até hoje, aposto que só vão voltar a aparecer quando for para ocupar um cargo importante qualquer e os meus inimigos se lembrarem disso para destruirem a minha credibilidade (a minha tatuagem da Cruz da Ordem de Cristo, da qual também me arrependo, pode fazer o mesmo sem ser preciso vasculhar tanto).

Agora que penso nesse roubo, apercebo-me que ter ficado sem todos os meus textos foi das maiores benesses que me foram dadas. Perder todas aquelas certezas que se têm quando se é jovem, ajudou-me a escrever de forma mais leve e directa, com muito menos peneiras. Os meus tópicos eram todos Setúbal, todos adultério e todos criminalidade, não deixa de ser poético que tenham sido roubados. Quando voltei, tinha a certeza que era preciso despachar a fase Setúbal da minha carreira, acabar o romance de vez, tratar daquelas memórias mais traumáticas sob a forma de contos.

Ainda assim, não era só o computador que estava dentro daquela mochila Eastpak. Também tinha o livro On Writing do Stephen King — uma leitura de que gostei tanto, que decidi deixar a última página para ler noutro dia, para tentar saboreá-lo mais um pouco. Ainda hoje digo que só escrevo mal porque me roubaram esse livro antes de o ter conseguido acabar, mas toda a gente percebe rápido que é uma tentativa de parecer humilde.

Os meus calções Ralph Lauren, num azul turquesa que parecia as águas da Arrábida em pleno verão, tinha sido um achado: 22€ no El Corte Inglés. Ao contrário dos calções, ainda tenho o talão dos saldos. Não doeu muito em termos financeiros, mas tinha um orgulho tão grande em ter aproveitado essa promoção. Até porque ainda não sei quando vou fazer o upgrade para Villebrequin, algo que ainda não está ao alcance do meu bolso (ou melhor, dos conteúdos dele).

Também havia t-shirts brancas e cinzentas da Uniqlo, as minhas favoritas para compor os fits minimalistas em que gosto de me aperaltar. Felizmente tinha uma vestida, se não tinha de ir em tronco nu até Lisboa.

Num grande bónus para os meliantes, somava-se aos itens já descritos, o facto de que dentro da minha mala havia também um pote de vidro, daqueles com fecho hermético, onde se somavam cerca de quinze gramas de produção de canábis, tanto caseira, como artesanal. Imagina a facada que foi para um pequeno produtor como eu, saber que tinha perdido a totalidade das suas colheitas.

Ainda hoje me rio a pensar na cara dos tropas que chegaram a casa e abriram aquela Eastpak. Qual dos itens os terá feito mais felizes? Decerto o MacBook, que podiam vender e revender para um maior lucro, mas não devem ter dito que não ao toque cítrico daquela Pineapple Express cuja denominação de origem protegida era literalmente a minha varanda no Bairro da Lapa.

Foi a última vez que deixei a mochila no carro. Posso ter ficado sem muita coisa, mas agora tenho este texto.

Se gostava de ter esta crónica literária descontraída, mas sempre divertida e repleta de referências culturais, na sua revista ou jornal de prestígio, eu teria muito mais gosto em fazê-lo do que folhetos ou brochuras corporativas. Contacte-me através do e-mail alexandre.dscouto@gmail.com para solicitações do género.

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