A escultura de Salazar

O Comité Crítico aproximou-se então da peça de Tyler The Creator. Era uma escultura humana, reluzente, em plástico. Caso estejam à procura de referências, não tinha absolutamente nada a ver com o trabalho barrento do Ron Mueck. Tinha um ar meio pop, meio cartoon, parecia chamar-nos até si para a explorarmos em maior detalhe.

— Parece uma sátira àquele museu que serve de armadilha para turistas nas grandes cidades, a plasticidade realista parece ser a mesma, não acham? — perguntou Daniel Tigre, informado como sempre.

Isso, claro, até ao horror de nos apercebermos de quem era. Os membros examinadores do comité aproximaram-se da peça e não conseguiram evitar o choque completo. A escultura retratava o antigo ditador de Portugal, o Salazar. Odiado por todos os que se achavam a favor da liberdade (muitos não faziam nada por ela, nem quando sabiam o impacto que podiam ter), outros sempre babosos de um futuro em que Portugal pudesse ser tão chalupa como quando achava que podia dominar o mundo a seu bel-prazer (dominava apenas povos com recursos bélicos inferiores aos seus).

Horácio Frutado foi o primeiro a comentar, algo em choque: — O Tyler sabe o que este homem pensava de pessoas como o senhor? — claramente a criticar como alguém negro podia ser fascista, o que era um argumento algo válido depois da brutalidade da guerra colonial que Salazar encetou por obsessão patriótica.

— Desculpa Horácio, tens toda a razão em perguntar isso, mas antes de continuarmos... O Tyler pode nos explicar o que é que tentou fazer com essa escultura? O porquê desse tema? — perguntou Daniel, num malabarismo mediático.

— Então foi assim. Quando eu fui estudar o neo-plasticismo aqui à Biblioteca dos Coruchéus — e levantou dois dedos para a câmara como se se congratulasse a si próprio por se ter lembrado de referir a Biblioteca como a Câmara Municipal pedia sempre — Apercebi-me que aquilo não tinha nada a ver com plástico. Plástico, nada. Eu curtia o Mondrian quando era puto, mas não era aquela a forma que queria comentar o mundo. Eu só queria fazer uma piada idiota de que fazia artes plásticas através de um trabalho em plástico, mas quando comecei a ver o tempo que demorava fui aperfeiçoando a ideia até à sua forma final. Shout-out para o Alex do Ateliê 1 que esculpir é uma trabalheira do pior.

— Tyler, nós acreditamos que toda a arte é política. A ideia de fazer um trabalho que não seja político é apenas uma vitória do neo-liberalismo. — disse Horácio.

— Tyler, porque é que decidiu fazer uma representação simpática de um dos maiores ditadores da história da Europa? Não nos vais dizer que esta escultura é contra o Salazar, pois não? — perguntou Cristina, outra das júris.

— Pró Salazar? Ainda não devem ter visto o outro lado — disse Tyler The Creator a rir-se.

O comité crítico, ainda meio ofendido, ficou em choque quando viu a parte de trás da peça. Esculpido com mestria, uma das mãos de Salazar na cintura estava a afinal a baixar ligeiramente as suas calças, revelando um rabo branquíssimo que contrastava com o fato preto. Talvez o mais chocante dessa traseira fosse que o orifício estivesse cavado em profundidade, dando a possibilidade de penetrar a figura do antigo ditador de Portugal, quer com os dedos, quer com algum objecto (até esse).

Enquanto os olhares do comité crítico sugeriam aquela dúvida de que vemos tantas vezes nos moderados (por um lado desejar o progresso, por outro lado temê-lo muito mais que todos os radicais), Tyler não ficou satisfeito.

— Então? Quem é que vai pôr os dedos aí dentro? — perguntou ele, algo indignado de ainda ninguém ter tentado.

De forma algo radical, o futebolista do júri chegou-se à frente. Daniel ajoelhou-se no chão como nas fotografias do plantel e meteu dois dedos dentro do buraco que fingia ser o outro buraco que tão bem conhecemos. A reacção dele não demorou:

— Ugh, isto é nojento! — disse ele, antes de se afastar com um salto. De onde teve os dedos ainda há pouco, surgia agora uma gosma verde-neón, que escorria de forma lenta pelas pernas da escultura.

— Olha, quem disse que o avacalho não pode ser uma forma de reparação histórica? — lembrou, e bem, Tyler.

O júri estava em choque. Se por um lado não queria ter um artista negro a homenagear Salazar, também sabia que ter um avacalho tão avassalador ao Salazar em plena competição também ia chocar a fatia da audiência portuguesa que se identificava como fascista e outra, maior ainda, que era fascista como tudo, mas fingia apenas ser conservadora.

— Tyler, o que é que você estava a pensar com isto?

— Os miúdos adoram slime, os pais e as mães adoram meter coisas no cu… Tentei fazer uma peça que agradasse aos públicos de todas as idades. – disse ele, com um sorriso, antes de ajeitar o boné verde de felpa e fazer um sinal de fixe para a câmara.

O júri não teve hipótese. Teve de pedir uma pausa à produção para reflectir em como é que se ia safar desta.

Olá, obrigado por teres lido esta breve reflexão no contexto artístico, tenho escrito muitas delas para o meu próximo romance. Se gostas da minha escrita e a quiseres apoiar, compra o meu romance Sinais de Fumo. Gostava muito de lançar “Capital da Arte” já para o ano, algo que só depende da minha ginga. O 25 de Abril foi o dia mais lindo da nossa história

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